Protagonista de sonhos, fantasias e histórias da nossa TV

Alencar em uma das cerimônias do Emmy, em 2019, o maior prêmio da indústria da TV, em Nova Iorque

Natal de 1967. Ele ainda era um menino de cinco anos descobrindo o mundo, mas ao ganhar de presente do pai o icônico robô B9, do seriado norte- americano “Perdidos no Espaço” foi como se a ficção se convertesse em realidade. Seus olhos brilhavam intensamente e o coração palpitava de alegria. Os sentimentos eram complexos. O seu “amigo da TV” havia se teletransportado para o seu mundo real invadindo literalmente sua casa fazendo que seus sonhos aflorassem e sua imaginação navegasse por mundos e horizontes até então desconhecidos. Os anos se passaram, e o que era um encantamento natural de criança se transformou em algo sério. A paixão pela TV o levou a se tornar um dos maiores especialistas brasileiros em teledramaturgia, se não, o maior de nossa história, reconhecido e prestigiado mundialmente graças à sua contribuição para o gênero da teledramaturgia nacional e internacional.  “Eu sempre quis trabalhar nesse meio”, confessa.

Consultor, escritor, ator, professor, biógrafo…são muitas as facetas do paulistano Mauro Alencar que se entrelaçam num mesmo homem. Em comum, a paixão pela arte, em especial pela teledramaturgia. Em uma entrevista exclusiva para o lançamento do meu blog “Desejo de Viver” (www.desejodeviver.com.br), Alencar falou sobre diferentes temas: da tardia, mas vital e importante representatividade do negro na TV, da sua extensa lista de novelas preferidas (que vão dos anos 70, 80 e 90 até obras mais recentes), do investimento e produção em novos remakes para a TV, do fortalecimento do streaming e dos avanços de outros países em teledramaturgia, como a Coreia do Sul. “Eles têm se destacado positivamente na indústria cultural”, apontou. Ele revelou como surgiu a ideia dos seus livros e o convite para escrever biografias, inclusive, uma delas, da atriz Susana Vieira, em fase final de produção. “Está sendo um mergulho literal nas profundezas do oceano, bem ao gosto de Clarice Lispector. Estou na fase final da história de vida desta grande mulher, atriz e estrela que é a Susana Vieira (o livro será produzido pelo Grupo Globo/ Globo Livros).

A biografia da atriz Susana Viera é o seu mais recente projeto e já está na fase final. “Tem sido um mergulho literal nas profundezas do oceano dessa grande mulher, atriz e estrela, que é a Suzana”.

Com a experiência de muitos anos acumulada em teledramaturgia, Alencar frisou que aceitaria o convite para escrever uma novela. “Certamente que sim! Até pelo meu trabalho de comercializar textos de novela, desde 1991, para o Chile (e outros países), de consultoria, pesquisa e redação. Seria um exercício muito interessante e instigante, como foi o de romancear novelas clássicas”.  Generoso, ele também deu conselho aos novos dramaturgos destacando a importância da leitura e o acompanhamento de outras artes,  como o teatro e o cinema como fontes constantes de aprendizado. “Primeiramente, indico a leitura de romances. O estofo vem da formação, dos bons cursos e diálogo com profissionais. Isso tudo é que fará a diferença. Aí está a vocação em aprender, a curiosidade pelas idiossincrasias da vida, pois o talento é nato. No entanto, o talento deve ser burilado, lapidado e evoluído. O destaque vem naturalmente.  E a boa surpresa acontece”.  

Alencar destacou ainda que de sua parte jamais imaginaria que fosse parar do outro lado do mundo por conta da teledramaturgia. “Hoje, Japão, China e Coreia do Sul são integrantes de primeira grandeza em minha vida”.  O especialista abriu seu coração e seu baú de memórias dando uma verdadeira aula de história para os amantes da boa e velha teledramaturgia.      

Qual a sua primeira lembrança de uma telenovela?

ALENCAR : Um ano antes de ganhar o robô e de me apaixonar pelo seriado Perdidos no Espaço, a TV Excelsior (a Globo daquela época), começou a produção de uma grande telenovela: “Redenção”, que ergueu a primeira cidade cenográfica do Brasil e lançou Francisco Cuoco ao estrelato. Eu tinha praticamente quatro anos e a novela terminou comigo chegando aos seis anos. Foram dois anos no ar, 596 capítulos de absoluto sucesso. Aí comecei a me interessar pelas telenovelas. Esse gosto foi se ampliando aos poucos com “A Muralha”, “Sangue do Meu Sangue” e “Os Estranhos”, com a presença do rei Pelé no elenco. Curiosamente, eu viria a trabalhar com ele em um comercial para TV anos depois. Eram novelas clássicas, da melhor qualidade. Natural que encantassem uma criança já ligadíssima em “histórias do faz de conta” narradas por sua avó paterna.  Quando o Brasil foi tricampeão da Copa no México teve a estreia de “Irmãos Coragem”, com as primeiras cenas no Maracanã (Flamengo X Botafogo). A novela misturava garimpo, diamante roubado, brancos, negros, índios. Um ano depois fui presenteado com a trilha sonora da novela “O Cafona”, coincidentemente, o primeiro lançamento em trilhas da Som Livre. A novela era estelar, sedutoramente bem produzida, e com muito charme e elegância. Daí para frente eu já estava completamente apaixonado pelo gênero.  

Trecho da novela Redenção, de 1966. Foi a primeira novela vista por Alencar ainda na infância e que o fez se apaixonar por teledramaturgia

E da paixão inicial da infância à escolha desta área como profissão, como foi esse processo?

ALENCAR: Eu sempre quis trabalhar nesse meio. Na minha adolescência (e até mesmo antes), o único caminho para se chegar ao universo artístico era cursar uma escola de teatro. Aos 16 anos fui para o Teatro Escola Macunaíma- mesma residência onde viveu Mário de Andrade-. Em 1980, só tínhamos três faculdades de Comunicação: USP, FAAP e PUC. E a única dedicada a Rádio e TV com Teatro era a FAAP. É para lá que eu fui. Nesse mesmo ano, ainda fiz um curso livre no Teatro Célia Helena. Depois, ingressei no curso completo do Teatro do Macunaíma e emendei com o curso de Literatura e História, mas meu primeiro contato com a televisão profissional veio com um estágio na TV Cultura. Eu tinha 20 anos. Fiz dez comerciais como ator e foi aí que conheci Pelé.

Como e quando surgiu o interesse de se especializar em TV?

ALENCAR: Comecei a especializar-me cientificamente em Teledramaturgia quando colaborei com Ismael Fernandes no pioneiro livro “Memória da Telenovela Brasileira”, em 1987. Tive como mestra a grande cronista de TV, Helena Silveira. Eu tinha 25 anos. Depois fiz mestrado e doutorado na USP pelas mãos do magistral Sábato Magaldi. E tive como orientadoras Renata Palotina (no mestrado) e Maria Dora Mourão (doutorado). Diga-se de passagem, tive os melhores mestres do Brasil. Além deles, convivi com Décio de Almeida Prado, Beatriz Forbes, Maria Aparecida Baccega, Maria Immacolata Vassallo de Lopes, Maria Lurdes Motter, Cristina Costa e com o artista Cyro del Nero, pioneiro das artes gráficas na TV. E no Rio de Janeiro, Artur da Távola, Barbara Heliodora, Aluízio Ramos Trinta e Heloísa Buarque de Hollanda.

O senhor é considerado um dos maiores especialistas do mundo no segmento de TV. No Brasil, todos gostam de opinar sobre as novelas e o futebol. O senhor acredita que a voz do povo sempre deve ser ouvida no caso de uma telenovela ou o autor deve seguir seu instinto e a sinopse até o final?

ALENCAR: A comunicação massiva é muito permeável. Não é uma obra fechada como o teatro, a literatura e o cinema. Ela é feita no calor da hora, quase um happening como bem apontava a cronista Helena Silveira, minha mestra pioneira no assunto. Nessa confecção diária há também a influência do ator. E mesmo nos tempos da produção de folhetins no Brasil, basicamente no século XIX, os autores vez ou outra cediam à tentação do diálogo com o público. É certo que José de Alencar não matou Ceci e Peri ao final de “O Guarani” por atender aos apelos da família e de amigos.  Do mesmo modo, Lauro César Muniz ampliou e muito a presença da personagem Cândida em “Escalada”, pelo brilhante desempenho de Susana Vieira. Mas é inegável que a palavra do autor é soberana. Por isso, nós temos um autor. Influências sim! Isso faz parte da estrutura da indústria diária do entretenimento, mas não estamos diante uma criação coletiva.        

Quais os trabalhos realizados no Brasil em teledramaturgia que o senhor considera que fizeram história na TV?

ALENCAR: A resposta é muito abrangente por que há muita coisa boa. E é isso que foi me atraindo na produção da nossa telenovela. A lista é imensa porque são produções que retratam as várias facetas psicossociais de nosso comportamento e de nossa relação com o cotidiano. De cada uma consigo extrair a moral da história. Também é certo que o período de ouro compreende as décadas de 70, 80 e 90 com títulos como “Irmãos Coragem”, “O Cafona”, “Bandeira 2”, “Selva de Pedra”, “Uma Rosa com Amor”, “O Bem-Amado”, “Os Ossos do Barão”, “Gabriela”, “Pecado Capital”, “Anjo Mau”, “Senhora”, “Escrava Isaura”, “Locomotivas”, “O Casarão”, “Maria, Maria”, “A Sucessora”, “Dancin’ Days”, “Feijão Maravilha”, “Roque Santeiro”, “Vale Tudo”, “Que Rei Sou Eu?”, “Tieta”, “Vamp”, “Renascer”, “Tropicaliente”, “A Próxima Vítima”, “O Rei do Gado”, “Terra Nostra” e “Por Amor”. A partir do ano 2000, destaco obras como “Laços de Família”, “O Cravo e A Rosa”, “O Clone”, “Senhora do Destino”, “Caminho das Índias”, “Cordel Encantado”, “Avenida Brasil”, “Cheias de Charme”, “Lado a Lado”, “O Outro Lado do Paraíso”, “Novo Mundo”, “Bom Sucesso” e “Mar do Sertão”. Todas essas novelas na Globo.

Escrava Isaura faz parte da “época de ouro das telenovelas”, segundo Alencar. É a novela brasileira mais comercializada no mundo

Destaco ainda “Mulheres de Areia” (Tupi e Globo), “A Viagem” (Tupi e Globo), “Antônio Maria”, “Beto Rockfeller”, “Vitória Bonelli” e “Gaivotas” (Tupi), “Antônio Maria”, “Beto Rockfeller”, “Vitória Bonelli” e “Gaivotas” (Tupi), “Éramos Seis” (SBT), “Dona Beija”, “Carmem” e “Kananga do Japão” (Manchete), “Pantanal” (Manchete e Globo) e “Os Dez Mandamentos” (Record).

Carro alegórico no sambódromo fez uma homenagem à história e importância das telenovelas no Brasil

Como o senhor analisa essa nova tendência de fazer remakes ao invés de obras originais e inéditas? Viu Pantanal? Crê que a atual versão fez sucesso pela memória afetiva do telespectador ou realmente mereceu esse destaque na mídia e na audiência pela qualidade do trabalho?

ALENCAR: Remake é um recontar de história que há muito acompanha a indústria cultural. Velhas histórias com “nova roupagem”. Caso do célebre filme “Dumbo”, que ganhou uma primorosa versão em 2019 para o clássico de 1941.  Os mexicanos são pródigos neste processo de produção. Fui aluno e amigo do grandioso Valentín Pimstein, um dos pilares da telenovela mexicana. E também de Delia Fiallo, a grande dama da telenovela hispânica e de Alberto Migré, pioneiro da telenovela argentina.

Ivani Ribeiro, saudosa, costumava dizer que um “remake” é fazer uma nova novela. E daí os seus grandes sucessos como “Mulheres de Areia”, “A Viagem” e “A Gata Comeu” (“A Barba Azul” na Tupi). Mas não é fácil. No Brasil, são poucos os remakes que realmente fizeram sucesso. “Pantanal” uniu a memória afetiva do ontem com a nova audiência do hoje. E ambas se misturaram para contemplar a exímia versão atualizada de Bruno Luperi sobre a obra monumental de seu avô, Benedito Ruy Barbosa. Portanto, temas contemporâneos envolvendo questões de raça e gênero foram tratados de maneira exemplar, mas sem trair a espinha dorsal da obra.  Essa também é a função do remake.

Em 2024, a TV Globo deve produzir o remake de “Renascer”, também do autor Benedito Ruy Barbosa e escrita por Bruno Luperi. Na sua opinião, existe alguma obra que mereceria um remake? 

ALENCAR: Sim, diversos autores e obras mereceriam um remake. Um deles, o consagrado dramaturgo Jorge Andrade. Em 1993, vendi o texto de “Os Ossos do Barão”, “Gaivotas” e “Ninho da Serpente” diretamente para Silvio Santos. Em 2015, vendi toda a obra do autor para a Globo, incluindo a polêmica “O Grito”. Pela sua amplitude e importância social, já está mais do que na hora de uma nova produção. Os melhores certamente foram os reescritos pela própria Ivani Ribeiro: “Mulheres de Areia”, “A Viagem” e “A Gata Comeu”. Também foram agradáveis “O Sexo dos Anjos” e “Amor com Amor se Paga”. E muito exemplar foi “Pantanal”. Já as novas versões de “Cabocla” e “Sinhá Moça”, deixaram a desejar. Em desalinho com o tempo/ leitura de produção estiveram “Ciranda de Pedra” e “Guerra dos Sexos”. Assim como a versão da Netflix para Rebecca (remake do romance de Daphne du Maurier transformado em supremo filme dirigido por Hitckcock em 1940). Não é fácil recriar uma história já consagrada. Equalizar atores novos, personagens, alinhar a trama com o presente mesmo sendo de época. Isso tudo requer uma carpintaria muito meticulosa como bem ensinava a mestra Ivani Ribeiro.

Novela Renascer deve ganhar uma nova versão em 2024. Aposta é repetir o sucesso do remake de Pantanal

O streaming é uma realidade no mercado audiovisual e os produtores estão anunciando o desejo de investir em novelas também. Tem acompanhado “Todas as Flores”? Qual a sua opinião sobre a novela nesta primeira fase e por que acredita que ela fez tanto sucesso? 

ALENCAR: A telenovela é um gênero (ou formato) de ficção bastante maleável. Daí a sua longevidade e estrutura facilmente adaptável. “Todas as Flores” é mais uma excelente novela de João Emanuel Carneiro que nos envolve com personagens instigantes e um enredo muito bem entrelaçado. O que o público quer é uma história bem contada, com personagens ricos de conteúdo e bem produzida. 

Novela Todas as Flores seria exibida na TV aberta e foi transferida para o streaming e se transformou em sucesso de crítica e público

Qual a sua opinião sobre a novela Travessia?

ALENCAR: “Travessia” está bem aquém do costumeiro encanto da autora com obras clássicas como “Barriga de Aluguel”, “O Clone” e “Caminho das Índias” ou de minisséries como “Desejo” e “Hilda Furacão”.  Observo uma falta de alinhamento entre texto, atores, direção e produção. Não houve no enredo um personagem ou grupo de personagens que cativassem o espectador. Com isso, tornou-se “apenas” mais uma novela. Mesmo assim, destaco o esforço em questão social (marca registrada da autora) como a cena em que Karina (Danielle Olímpia) é enganada por um pedófilo na internet. Isso deixou um importante alerta sobre os riscos do mundo virtual. 

O senhor acredita que o streaming pode roubar espaço das novelas convencionais? O público tradicional de novela pode optar pelo streaming frente às novelas originais?

ALENCAR: Acredito num bom convívio da telenovela tanto na TV aberta quanto no streaming. O que a telenovela está precisando em seus quase 60 anos de vida -a telenovela diária começou a ser produzida no Brasil em julho de 1963-, é de uma remodelação geral. Não creio que o público seguirá acompanhando histórias tão longas. O streaming vem ganhando espaço porque está em consonância com o contemporâneo. Não podemos jamais analisar um processo artístico isolado de outras ciências. De qualquer maneira, o sucesso das reprises de clássicos no Canal Viva e no Globoplay mostram a força da teledramaturgia independentemente da plataforma. Então, você terá as produções mais antigas e clássicas, com mais de 100 capítulos, como “O Bem-Amado”, “Tieta”, “Anjo Mau”, “A Sucessora” e “Elas por Elas” para citar alguns exemplos convivendo com novas produções para o streaming com menor número de capítulos e até mesmo por temporadas, caso de “Todas as Flores”. O consumo da arte é amplo e irrestrito.      

O streaming possibilitou que muitas novelas fossem revistas. “Elas por Elas” é um dos clássicos e que ganhará um remake na Globo este ano. Thereza Falcão e Alessandro Marson farão a adaptação da trama que terá direção de Amora Mautner

Os autores “medalhões da TV” estão aposentados, morreram ou foram dispensados pelas emissoras. Como o senhor analisa esse processo de renovação? Quais os autores dessa safra jovem que podem se destacar no futuro? E como vê a importância dos colaboradores numa trama?

ALENCAR Não temos mais o “autor – grife” que imperou até a primeira década dos anos 2000. Mas, dentro do processo atual da produção audiovisual era inevitável que isso acontecesse. Ou seja, que terminasse esse reinado. Portanto, é um processo de renovação natural, pois tudo na vida tem um começo, meio e fim. Fato é que dentro da Quarta Revolução Industrial em que vivemos, o roteirista é uma peça da engrenagem maior: o produto em si; seja na TV aberta ou o streaming. Cito alguns: Thelma Guedes, Duca Rachid, Rosane Svartman, Mario Teixeira, Claudia Souto, Daniel Ortiz, Gustavo Reiz, Thereza Falcão, Alessandro Marson e Maria Helena Nascimento. Como apoio do autor principal ou de sua equipe de roteiristas, creio que o colaborador pode contribuir nas atividades básicas da elaboração de um capítulo. E desse colaborador, pode surgir um novo autor.

 Atualmente o senhor está acompanhando alguma obra? Costuma ver as novelas antigas no streaming?

ALENCAR: Vejo tudo ao mesmo tempo. Leio muito também. É uma interação completa com esse universo. Novelas antigas eu vejo em meu próprio acervo, mas revi com muito prazer “Brega e Chique”, “O Bem-Amado” e “A Sucessora”. São novelas que me acompanharam a vida toda. E, para ser sincero, nada mais me surpreende porque sempre vejo uma produção com a consciência da época em que foi produzida. Por outro lado, louvo poder rever a atuação de grandes atores. Atualmente, prefiro acompanhar produções internacionais. Essa foi a grande conquista do streaming para o consumidor. Temos o mundo da teledramaturgia em nossa casa. Até então, eu só conhecia produções estrangeiras em época de votação para o Emmy ou em minhas viagens para o exterior, seja com algum trabalho em emissora de TV, produtora ou palestra / workshop em universidades ou centros culturais.

O Bem- Amado é uma de suas obras preferidas na TV e ele teve a honra de escrever a sua história na série grandes novelas

Como estudioso do assunto, o senhor já viajou para outros países e acompanhou de perto as produções locais. Quais países se despontam em teledramaturgia? Existe alguma novela em especial que tenha lhe chamado atenção fora do Brasil?

ALENCAR: O México é a maior potência na produção de teledramaturgia. Também destaco a Colômbia com seu estilo “costumbrista”. De lá, surgiu a primeira produção do mundo globalizado: “Yo Soy Betty, la Fea”.  Tive o privilégio de entregar um galardón a seu criador, Fernando Gaitán, em evento realizado em São Paulo (por ocasião da exibição da novela na RedeTV), e depois participei de um workshop ministrado por ele em Bogotá. Do Oriente, sem sombra de dúvidas, a Coreia do Sul. E de lá destaco a novela “Una Joya en El Palacio” que eu trouxe em versão espanhola para o Brasil. É sobre a ascensão de uma jovem empregada e cozinheira do rei. Lindíssima a história e a produção. E “Escrava Isaura” (produção da Globo de 1976) ainda é o grande clássico brasileiro no exterior. 

A China foi apenas um dentre tantos países que Alencar viajou como estudioso de telenovelas. O Oriente tem sido uma rotina em seu trabalho atual

Cena da novela coreana “Una Joya en Palacio” (dublada em espanhol), apontada por Alencar como um grande trabalho da teledramaturgia internacional

O Brasil é famoso mundialmente pela produção de telenovelas e séries. Por outro lado, o mesmo país que produziu e ainda produz obras memoráveis não consegue se destacar no cinema a nível mundial. Por quê o senhor acredita que nossas produções cinematográficas não são reconhecidas? O que precisa para o Brasil voltar a ser indicado a um Oscar de melhor filme estrangeiro?

ALENCAR: Talvez a temática de nossos filmes ou a ausência de um processo sistêmico que promova a produção cinematográfica de modo mais incisivo criem obstáculos para o reconhecimento e indicação a uma Oscar de nossos filmes.  Comecei a frequentar o Oriente em 2012. Em uma das vezes em que estive na Coreia do Sul fui a convite do Ministro do Esporte, Cultura e Turismo. E ele deixou bem claro para mim que eu estava lá em função da abertura do país ao ocidente, e que investir em cultura, em intercâmbio e na chamada “economia criativa” era vital para o desenvolvimento de uma nação. Sem isso, o progresso não se estabelece por inteiro. Por isso, a Coreia do Sul tem se destacado no mundo da indústria cultural, com novelas, séries e conquistou o Oscar com o filme “Parasita”.  

    

Filme “Parasita” colocou ainda mais em evidência investimento coreano na economia criativa o que levou o país a se destacar mundialmente na produção cultural

O senhor escreveu duas biografias (Paulo Gracindo e Nívea Maria), está finalizando a de Susana Vieira. Como foi a experiência com as de Nívea e Gracindo?

ALENCAR : Ganhei o gosto por escrever biografias a partir do convite do saudoso Rubens Ewald Filho, um dos maiores especialistas da arte cinematográfica de nosso país. À época, na primeira década do ano 2000, Rubens dirigia a coleção Aplauso para a Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo. De imediato, escolhi Nívea Maria por sua fundamental importância não apenas na história da teledramaturgia mas, em particular, no horário das seis da TV Globo, que era dedicado às adaptações literárias. Tenho verdadeira paixão, obsessão até por esse processo de migração narrativa. Tive o privilégio de ter como mestre e padrinho na vida e na Globo, o grande diretor Herval Rossano, que implantou o processo de adaptações na Globo, em 1975. Herval era casado com Nívea desde que a conhecera como protagonista da novela “A Moreninha”, em 1975. Portanto, mergulhar nesse processo íntimo de trabalho e de vida com a atriz Nívea Maria foi muito, muito importante e gratificante.

A biografia de Paulo Gracindo surgiu após sua participação em um documentário sobre o ator. “Sou seu maior fã. É o ator da minha vida”, diz Alencar

E a biografia de Paulo Gracindo, como surgiu o convite?

ALENCAR: Com Paulo Gracindo, o processo foi outro. Eu havia participado como entrevistado do documentário “Paulo Gracindo, o Bem-Amado”, dirigido por seu filho, Gracindo Junior, em 2008. Rejane Dias, diretora do grupo editorial mineiro Gutenberg, propôs transformar o documentário em livro. E Gracindo incumbiu-me a preciosa tarefa de adaptar o audiovisual para livro. Foi magnífico. Em especial, porque Paulo Gracindo foi e é o ator da minha vida desde os nove anos de idade quando me encantei por sua presença no papel do bicheiro Tucão na novela “Bandeira 2”, do saudoso amigo Dias Gomes. A partir daí passei a acompanhar sistematicamente sua carreira, inclusive no teatro. Em 1988, durante o mestrado na USP, o conheci pessoalmente durante a montagem de “O Preço”, de Arthur Miller.  Ficamos amigos, e ele me levou a conhecer sua família, no Rio de Janeiro, em Laranjeiras; em especial, a filha Lucilla. Lançamos o livro em 2012.

E depois da biografia de Susana Vieira, de quem o senhor gostaria de contar a história?

ALENCAR : Sempre penso em nomes para biografar, para viajar.. Um deles, Francisco Cuoco; ainda que muito tenha registrado sobre sua carreira. Mas esse processo, tão íntimo, vai acontecendo naturalmente.

Para uma novela fazer sucesso o que ela precisa ter? Qual o (s) personagem (ns) que o senhor mais gostou numa trama?

ALENCAR: Há sempre uma questão imprevisível no processo artístico, um risco. Não há receita exata, felizmente. Em linhas gerais, uma boa história, em sintonia com as necessidades contemporâneas e personagens que contenham o mental, o espiritual e o físico em alinhamento. Digo isso porque temos os “coautores”: atores, diretores e produção. Era o que preconizava Bertolt Brecht, por exemplo. E há um mundo de personagens em minha memória. Não posso nem devo magoar nenhum deles por não citá-los em lista.     

A Globo terá esse ano protagonistas negros nos três principais horários de novelas. Qual a importância dessa representatividade e debate em sociedade?

ALENCAR : Isso é fundamental e mostra o avanço da sociedade e a importância da produção artística nesse processo. Essa representatividade é necessária em absoluto. Em 1888, tivemos a libertação dos escravos, mas não do racismo que se tornou institucional, como bem nos lembra o mestre Muniz Sodré. Em 1975, Milton Gonçalves pediu à Janete Clair um papel onde o preto usasse terno, sapato bonito e tivesse curso superior. O grande ator estava cansado de só representar “tipos folclóricos, garimpeiro, pescador…” E aí nasceu o Dr. Percival, psiquiatra de primeira grandeza. Mesmo assim, a Censura incomodou-se quando Percival se apaixonou por uma mulher branca. Resumindo: só a arte (dramática em particular) tem o poder transformador. A arte e a educação, a cultura em sentido stricto.   O poder de iluminar o obscuro do comportamento humano, de movimentar, revolucionar, quebrar tabus, propor saídas para a evolução humana dentro do labirinto psicossocial. Por esse motivo, os regimes ditatoriais se incomodam tanto com a produção artística.

Milton Gonçalves em cena de Sinhá Moça. Ator foi um dos precursores a pedir representatividade diferente dos negros na TV à escitora Janete Clair.

 Como o senhor analisa o mershandising social nas novelas?

ALENCAR: Transformar a dor em prazer estético é uma das premissas da arte e foi muito divulgada por meu saudoso colega da Academia Brasileira de Letras, o poeta Ferreira Gullar. O valor social da arte é peça – chave para ampliarmos a compreensão do humano, para equalizarmos as diferenças intrínsecas de cada um; porque, afinal, tudo é manifestação do humano (basta recorrermos à História da arte, da literatura, do teatro, do cinema.  Veja o exemplo de “A Cabana do Pai Tomás”. Publicado em 1852, ajudou a estabelecer a Guerra Civil Americana que culminou com a derrota do Sul escravocrata e a consequente abolição legal do cativeiro de africanos e descendentes em todo o território das então já independentes 13 colônias. Foi um testemunho de que a escravidão não era natural. Isso levou o presidente Abraham Lincoln a se dirigir à autora Harriet Beecher Stowe congratulando-a como a pequena mulher que escrevera um livro capaz de iniciar uma grande guerra. No Brasil, em 1876, Bernardo Guimarães utilizou-se de uma “branca com sangue africano” para escancarar a hipocrisia social de um país racista e preconceituoso. E surgiu a “Escrava Isaura”, imortalizada na interpretação de Lucélia Santos, com magnífica atuação de Rubens de Falco no papel do escravocrata Leôncio.

 Conte um pouco da sua trajetória como escritor.

ALENCAR : Em 2000, recebi um convite do Senac do Rio de Janeiro para escrever um livro sobre História e Produção da Telenovela. Minha inspiração maior foi o Panorama do Teatro Brasileiro, de Sábato Magaldi, meu mestre absoluto.  E pela minha admiração à literatura e ao teatro, fui entrelaçando os assuntos: folhetim, literatura, radionovela. Eu já estava com dez anos de Globo e havia passado pela TV Cultura e SBT, sempre na área de Teledramaturgia. O convívio com atores, diretores, produtores, aulas nas oficinas de ator, direção e produção na Globo também contribuíram para o resultado do livro “A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil”, em segunda edição. O que veio depois, foi consequência disso. E aí destaco as adaptações para romance das novelas “Selva de Pedra”, “O Bem – Amado”, “Pecado Capital”, “Roque Santeiro” e “Vale Tudo”. Estes últimos livros foram um trabalho sensacional de migração narrativa a convite da TV Globo e da editora que realizei em parceria com Eliana Pace, inclusive “Selva de Pedra” levou-me a prestar homenagem à Janete Clair, em Barcelona, 2007. Convite de Amanda Ospina, à frente do evento “Cumbre Mundial de la Industria de la Telenovela y Ficción”.       

Alencar publicou vários livros, dentre eles, a Hollywood Brasileira- Panorama da Telenovela no Brasil

Como foi o seu trabalho como consultor de teledramaturgia?

ALENCAR: Na década de 1980, fiz parte do Grupo de Teatro Cultura Inglesa e tive a oportunidade de participar de dois workshops ministrados por diretoras da Inglaterra.  Em 1991, fui assistente de Paulo Autran em montagem teatral na FAAP. E no mesmo ano comecei a trabalhar como assessor de Teledramaturgia nas maiores emissoras de TV do Chile: TV Nacional e Universidad Católica.

Fui convidado a escrever livros sobre o tema e a ingressar na TV Globo no “Vídeo Show”, dirigido por Cacá Silveira. Em 30 anos de Globo fiz de tudo um pouco: produção, comunicação, internacional, merchandising, desenvolvimento artístico, Som Livre, jornal O Globo, Editora Globo (Globo Livros). Trabalhei em redação de texto, consultoria, aulas de teledramaturgia nas oficinas, participação na produção do Xou da Xuxa, projetos especiais como o Globo 30 e o álbum 50 Anos de Novelas. Além da série “TV Ano 50 / Globo 35”, comandada por Carlos Manga, Alice Maria e Silvio de Abreu. Eu defino como, particularmente interessante, a minha assessoria a convite do Silvio Santos para a novela “Revelação”, de Iris Abravanel (sua esposa). Em 2008, fiquei por seis meses entre o SBT e sua residência. Por fim, o diretor – geral da Globo, o querido Ocátvio Florisbal, exigiu exclusividade à empresa. E na sequência, comecei um longo trabalho no departamento de Comunicação da Globo, sob o comando de dois profissionais que muito me incentivaram: Luis Erlanger e Monica Albuquerque. Em 2013, Monica (hoje executiva da Warner) me levou para o setor de Desenvolvimento Artístico.

Alencar ao lado de mural na Bahia que retrata inúmeras tramas de sucesso tendo o Estado como pano de fundo

Em sua trajetória profissional também teve passagens pelo cinema?

ALENCAR:  Sim, fiz a consultoria e roteiro para o filme – documentário “Brasileiríssima”, dirigido por André Bushatsky, com produção da Globo Filmes, Globo News e Canal Brasil. Além disso, outro trabalho que destaco na minha carreira foi a consultoria para a exposição “Assista a esse livro”, com direção de Luiz Fernando Carvalho  e do publicitário Sérgio Valente.

Consultoria para o cinema na história de Brasileiríssima, um filme sobre a história das telenovelas

E na área acadêmica, como o senhor avalia essa fase?  Há projetos futuros neste campo?

ALENCAR: É Doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana – (USP), Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (EMMY). Na área acadêmica, destaco as aulas de pós -graduação em Teledramaturgia no Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo a partir de 2022. Sou confesso admirador da residência fundada por Machado de Assis, as diversas apresentações sobre Literatura e Teledramaturgia na Academia Brasileira de Letras. Inclusive, foi lá que lançamos nova edição de “A Sucessora”, romance de Carolina Nabuco, que eu tive o privilégio de prefaciar em 2018. Recentemente, tive convite para pós-doutorado em Portugal. Estou estudando as possibilidades. Mas é o meu tema do momento: Teledramaturgia e Globalização.

Alencar em uma de suas viagens pelo Brasil. O estudioso estuda convite para fazer um pós-doutorado em Portugal. País pode ser seu próximo destino

Jornalista, roteirista, escritor e ator brasileiro com mais de 20 anos de experiência em comunicação.Vivo atualmente em Barcelona onde trabalho como correspondente internacional, mas já morei em outros países, como Portugal, Irlanda, EUA e Itália onde sempre estive envolvido com projetos na área de comunicação- minha grande paixão-.Como roteirista, destaco a coautoria na sinopse e no 1 capítulo da novela "O Sétimo Guardião" (TV Globo/2019), o documentário "Quem somos nós?", sobre exclusão social, e o curta-metragem "As cartas de Sofia".Como repórter, trabalhei em grandes grupos de comunicação no Brasil, como RBS, RAC e RIC. Ganhei o prêmio Yara de Comunicação (categoria impresso) em 2013 com uma reportagem sobre as diferentes famílias e histórias de vida às margens do rio Piracicaba (SP). Fui finalista do prêmio Unimed de Jornalismo/SC com uma reportagem sobre gravidez precoce.

One Comment

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *