Diário de um imigrante- Cap 5

Na última parte do episódio anterior da série “Diário de um imigrante”, eu estava parado na porta do Restaurante Tacho Real, muito conhecido em Sintra, pela boa comida e ambiente. Aquele poderia ser o meu primeiro emprego fora do Brasil, mas como seria atuar fora da minha área? Eu nunca sequer havia imaginado um dia trabalhar como garçom- não porque não valorize a profissão- muito pelo contrário, pois sei o quanto é dura e muitas vezes desvalorizada. O meu receio era porque não conseguia me imaginar equilibrando copos e bandejas. Quem me conhece sabe bem que sou distraído e sem coordenação motora. Mas era preciso dar o primeiro passo e eu dei!
Ao entrar naquele restaurante português meu coração saltava literalmente pela boca. Eu olhava para aquelas mesas vazias e já vislumbrava a cena cômica. Tomada 1: Restaurante lotado. Entra um garçom apressado, no caso eu, tentando equilibrar uma bandeja. Tomada 2. Corta para o garçom chegando à mesa e trocando os pedidos. Logo em seguia, muito nervoso ele derruba um dos pratos no colo de uma cliente. Começa a confusão. Chega a dona do restaurante e olha furiosamente para o garçom que todo sem jeito começa a limpar toda sujeira. Tomada 3. Garçom é demitido e ainda tem que pagar o prejuízo.

Essa era apenas uma das mil cenas que minha mente de roteirista criou em uma fração de segundos até a chegar de Maria Isabel, a proprietária. Era uma portuguesa muito simpática e jovem. Toda sorridente pediu para que eu me sentasse e contasse um pouco de minha experiência. Eu queria sair correndo dali. Como contaria algo que eu não tinha? Podia mentir (muitos imigrantes quando buscam emprego no exterior e estão ilegais fazem isso). Mas no meu caso eu não queria mentir porque já no primeiro gesto como garçom ela descobriria toda verdade.
Por outro lado, eu também não queria confessar a principal razão que tinha me levado à Portugal. Preferi omitir o contexto e dizer que havia viajado por um motivo pessoal e também porque queria vivenciar uma nova cultura. Assim estava bem porque isso não era uma mentira. Confessei a ela sobre minha experiência no ramo, ou seja, minha total inexperiência já que nunca havia levado uma bandeja na minha vida ou atendido uma mesa. No final, ressaltei que necessitava daquele trabalho para ficar no país e que ela me desse uma oportunidade.
Vendo minha sinceridade, Maria Isabel abriu um largo sorriso e sussurou baixinho ao pé do meu ouvido que isso não seria problema desde que eu me esforçasse para aprender e que nunca faltasse ao trabalho sem uma justificativa forte porque ela contaria comigo. Além de mim só haveria outro garçom na casa. Maria explicou as condições de trabalho e disse que eu teria uma folga semanal, e que nos finais de semana era o dia de maior movimento. O horário era desgastante. Abria um pouco antes do almoço e fechava às 15h. Depois reabria às 19h e ia até meia noite. Para quem estava acostumado a trabalhar em um horário comercial e ter folga aos finais de semana esse seria um desafio a ser vencido.
Só que eu não tinha outra escolha. Sem documentos e sem indicação, seria praticamente impossível trabalhar em Portugal. Só me restariam os subempregos. Eu tive muita sorte de ter a indicação de Angelo e também deles me aceitarem trabalhar sem documentação. De longe, aquele não era o emprego dos meus sonhos, mas eu havia viajado com poucos recursos e se quisesse durar mais tempo ali teria que me adaptar à nova realidade. (Aqui abro um parênteses para dar o primeiro conselho para quem deseja imigrar).
1) “Não viaje ilegal! Caso o faça, saiba que a oportunidade de dar errado é muito grande, pois cada vez mais a fiscalização está severa, e por isso, os empregadores não dão oportunidade para quem não tem permissão para trabalhar. Se mesmo assim você quiser arriscar, saiba que o subemprego é a realidade da maioria dos imigrantes, e até mesmo quem tem papel passa por essa realidade (eu passei muitas vezes por essa situação)”.
Condições de trabalho expostas e aceitas da minha parte, Maria me perguntou se eu podia começar naquele mesmo dia e que me emprestaria uma camisa branca de manga social. A calça tinha que ser preta e o uso do sapato social era obrigatório. Eu odiava usar roupa social, mas não tinha jeito. Eu já havia sido orientado por Angelo a ir à entrevista com uma calça social e sapato. Então, eles me emprestaram somente uma camisa de outro garçom que havia saído. Maria também me apresentou a um jovem angolano muito carismático: Beto, e disse que ele seria as minhas “mãos e pés” ali porque era um funcionário de extrema confiança deles e muito experiente, e que me ensinaria toda a rotina.
Após as apresentações, ela nos deixou e correu para a cozinha para supervisionar os últimos preparativos do almoço. Muitos pratos já ficavam pré-cozidos para facilitar na hora dos pedidos, principalmente os mais indicados da casa que sempre eram pedidos pelos clientes, como o famoso bacalhau português. Beto me ensinou primeiro a montar as mesas. Elas deviam estar rigorosamente iguais com os talheres , copos, taças e guardanapos muito bem alinhados. O restaurante era referência em gastronomia e agora eu fazia parte daquela família.
Além de Beto e Maria Isabel haviam duas chefs de cozinha e uma terceira chef específica para o preparo das sobremesas- um dos carros chefes do local-. Eram doces típicos e tradicionais da rica cozinha portuguesa. Uma das vantagens de se trabalhar em restaurante é que a equipe toda almoça e janta no local, e com isso você acaba economizando com a comida.
Como bom brasileiro, tratei logo de me enturmar com as meninas da equipe, afinal de contas, passaria mais de oito horas por dia com elas e com Beto e era importante me abrir a pessoas de outras culturas. Todos eram portugueses, exceto Beto e eu. Neste primeiro dia lembro que após terminarmos de arrumar todo salão principal e também de montar as mesas da terraça, nós fomos comer juntos com a equipe em uma mesa ao lado da cozinha. Uma das chefs, Mafalda, me trouxe toda feliz um prato de ensopado de peixe com batatas. Detalhe: eu odeio qualquer tipo de peixe e frutos do mar.
Eu não sabia o que fazer. Negar era muito feio porque era o meu primeiro dia e não queria parecer mal educado mas eu não conseguia comer peixe. Era botar na boca e eu já tinha vontade de vomitar. Minha saída foi comer as batatas e fingir que comia o peixe. Quando eles perceberam que eu não havia comido nada tive que disfarçar e disse que era porque estava com o estômago cheio ainda do café da manhã.
Almoçamos em menos de 20 minutos porque naquele dia tinha feito a entrevista. Então, corremos para receber os primeiros clientes. Em questão de minutos todas as mesas estavam lotadas. Daí sim eu comecei a entrar em pânico. As cenas que havia fantasiado em minha cabeça passaram de um nível cômico a trágico. E se realmente acontecesse tudo aquilo? E se eu quebrasse aquela prataria cara? E se??? Eram muitas as dúvidas e a insegurança batendo forte. Beto sorria do meu desespero e pedia para eu me acalmar, mas eu me conheço bem. Odeio pressão. Eu fico muito desconcertado e inseguro quando sou pressionado e acabo me atrapalhando todo.
Para piorar, a primeira mesa que eu fui atender eram de três casais de turistas ingleses. Se fosse para julgar pelas roupas e joias que estavam usando eram pessoas muito ricas e sofisticadas. Quando vi que falavam inglês tive um bloqueio. Como atendê-los se eu não falava inglês? Beto estava em outra mesa tirando os pedidos e Maria Isabel vendo o impasse veio me socorrer. Justo na minha estreia como garçom o restaurante estava completamente lotado com maioria de turistas estrangeiros.
A partir daquele momento fizemos um acordo. Quando eram clientes portugueses ou brasileiros eu tiraria os pedidos e de outras nacionalidades ficariam sob a responsabilidade de Beto e de Maria Isabel. Com isso, evitaríamos problema com os clientes, principalmente erro nos pedidos, que era algo totalmente ruim para a imagem de um restaurante. As três primeiras horas passaram tão rápido que eu nem percebi, mas também não parei um minuto. Ia e voltava da cozinha, limpava mesas e montava mesa para os próximos clientes- muitos ficavam as três horas seguidas-. Naquela tarde, às 15 horas, Beto disse que eu poderia descansar e que deveria retornar às 18h30 para a montagem do segundo turno: o jantar Ele ficaria dormindo ali mesmo em um colchão improvisado.
Na verdade, após minhas primeiras horas de trabalho eu estava tão exausto que preferia mil vezes ter ficado dormindo no restaurante. Sem outra opção, saí para conhecer a região central, mas depois de duas horas já havia conhecido tudo e não foi uma experiência interessante porque praticamente todo comércio fechava às 15 horas. Quem trabalhava ali e tinha a vantagem de ir para casa descansar era maravilhoso. Esse não era o meu caso! Beto nunca me deixou dormir no restaurante porque dizia que os patrões não gostavam nem que ele dormisse. O ideal seria eu retornar para Cacém, mas entre ida e volta, e gasto com passagem, ia perder quase uma hora no trajeto e gastar muito com transporte.

A partir do meu segundo dia de trabalho, as praças públicas se tornaram minhas melhores amigas. Era com elas que eu desabafava, chorava minhas mágoas e ficava quase quatro horas sentado porque já conhecia tudo ali e não havia mais o que ver, sem contar que tudo ficava fechado na hora do almoço, exceto pequenos comércios, mas que eu já conhecia de tanto passar em frente para gastar tempo. Sou muito agitado e não conseguia ficar sem fazer nada. Era impossível dormir nas praças. Geralmente eu levava um livro e um caderno e aproveitava para escrever cartas. Cada dia escrevia para um amigo ou parente diferente, mas agora havia uma pessoa em especial para escrever: Déa, e essa foi minha salvação para aliviar aqueles dias angustiantes.
Apesar de gostar de todos, eu não suportava o trabalho. Era uma rotina estressante e me sentia como um robô revezando entre mesas e a cozinha, e depois já sabia o que me esperava: quase quatro horas sentado em um banco de praça onde as horas não passavam e aquilo me consumia. Ficar tanto tempo parado era a pior parte do dia porque isso me deixava mais cansado para o próximo turno de quatro horas que teria de enfrentar até meia noite, e depois mais uma jornada de trem até minha casa. E no outro dia tudo de novo!
Mas o que fez toda diferença e que acalentou o meu coração nas semanas seguintes de trabalho foi uma ligação que recebi no retorno do meu primeiro dia do restaurante. O telefone tocou por volta da 1 hora da manhã. Paula acordou assustada e veio me chamar. Disse que era do Brasil. Fiquei preocupado e morrendo de vergonha pelo horário, mas ela me tranquilizou contando que era normal as pessoas se enganarem por causa do fuso horário, pois no Brasil ainda era cedo. Quando eu escutei a voz do outro lado da linha era como se todo cansaço, estresse e nervoso daquele dia tivesse passado instantaneamente. “Amor”. Foi a única coisa que ouvi. Eu chorei ao ouvir aquilo. Era a voz de Déa, e eu podia reconhecê-la em qualquer lugar do mundo. Ela estava tão longe fisicamente, mas era como se estivesse do meu lado. Eu podia sentir sua respiração, sua voz sussurrando e até o mesmo o seu perfume,
Há anos eu não sentia isso e como aquilo me deixava feliz. Eu havia atravessado um oceano para me libertar de algo que me aprisionava e me fazia infeliz, e agora o universo me enviava do outro lado desse oceano algo para alegrar meu coração. Depois de anos de sofrimento, de angústia, de frustrações e recolhimento eu voltava a sorrir de novo. Eu estava apaixonado. Só que ainda existia dois grandes obstáculos para que nosso amor tivesse uma outra oportunidade: Déa era casada e apesar de eu estar sem as próteses não estava preparado para retornar ao Brasil e me assumir como eu realmente era. Isso me angustiava. Será que algum dia eu teria coragem de voltar?
Só que o destino, outra vez ele, sorrateiro como sempre, decidiu interferir de novo na minha caminhada. Duas semanas depois que eu havia chegado em Portugal um novo telefonema de Déa, desta vez, aos prantos, me fez repensar toda minha história até ali. Eu não esperava por aquilo. Era muita responsabilidade. E agora, o que fazer?
NOTA DA REDAÇÃO: Os nomes dos personagens citados no texto foram trocados para manter a privacidade dos mesmos.
VEM AÍ
No próximo capítulo de Diário de um imigrante, contarei o desfecho desse telefonema e de como minha história em Portugal sofreu uma mudança radical nas próximas semanas.
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