Diário de um imigrante – Cap 15

“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Começo este capítulo de meu diário virtual falando de SONHOS. Amo com toda força do mundo essa palavra, afinal, o que seria de nossas vidas se não sonhássemos? O sonho desta frase foi escrito por Álvaro de Campos, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa. É minha singela homenagem a um dos maiores poetas do mundo, autor de grandes obras, e que ao lado de Luís Vaz de Camões são dois dos principais expoentes da cultura portuguesa. E começo por ele minha segunda experiência em Portugal- a primeira havia sido em 2001, ano que decidi sair do Brasil para curar feridas internas que me atormentavam desde a adolescência.
Mas a situação agora era outra. Estávamos no início de 2009. O mundo ainda tentava entender os impactos da crise econômica mundial de 2008. Muitas economias do planeta haviam sido fortemente abaladas. Os países do continente europeu, incluindo a Irlanda, onde eu havia estado antes foram uns dos mais atingidos, e com Portugal, não era diferente. Mesmo assim, o país havia sido a única opção que Fernando e eu tínhamos encontrado para não voltar ao Brasil. Estávamos exatamente na metade do nosso visto de estudante em Dublin (válido por um ano), quando sentimos que seria impossível continuar ali sem trabalho. O dinheiro estava acabando e não teríamos mais de onde tirar.
A volta antecipada ao Brasil seria a solução mais segura. No entanto, a palavra segurança não constava do nosso dicionário. Não que não gostássemos de estar seguros, pelo contrário, mas não deixávamos que o medo nos impedisse de seguir adiante e de viver novas aventuras. Até ali tinha sido daquela maneira- até a forma como nos conhecemos e começamos nossa relação havia sido movida por impulso, por desejo de acertar e de provar o diferente.
A ida para Portugal foi decidida em instantes e sem tempo para pensar muito nos prós e contras. Fer sabia que eu estava arrasado. Mesmo sem trabalho em Dublin eu não queria sair do país. Era meu sonho estar ali e deixá-lo por falta de trabalho me causava uma sensação de derrota, mas ninguém no mundo poderia dizer que eu não havia lutado para ficar. Creio que dos meus amigos eu era o que mais saía para buscar trabalho. Muitas vezes ia sozinho. Levantava cedo embaixo de chuva e voltava só à noite para casa. Passava o dia com um sanduíche no estômago. Ia também para a biblioteca lutar por uma hora de internet livre para mandar meus currículos, mas ninguém estava contratando por causa da crise.
Por sorte, e talvez desta vez, por uma mãozinha do destino, Fer havia enviado um e-mail para O Boticário, em Portugal, e havia tido uma resposta que nos deixou animados: ele poderia ser contratado experimentalmente para dar cursos de maquiagem para as clientes, já que um dos maquiadores da rede portuguesa, também brasileiro, estaria voltando para o Brasil. Não havia promessa de que a vaga seria dele, mas Fer era muito bom em maquiagem e havia sido um destaque em Santa Catarina, estado onde morávamos antes de ter ido para Dublin. Outra coisa que pesava a favor era que o responsável pela contratação também era brasileiro. Em teoria, isso talvez pudesse favorecê-lo.
Decidimos arriscar! Deixamos as malas maiores na casa de amigos e partimos com duas mochilas de costas para Portugal, já que a companhia área era low cost e não permitia bagagem extra. Isso para mim era um tormento, pois nuncaaaaaaaaaaaaa soube fazer uma mala com poucas roupas. Já contei aqui nos capítulos anteriores como foram as minhas malas para Portugal e Irlanda, inclusive, o episódio da imigração em Dublin.
Nossa rota estava traçada. Íamos de avião de Dublin para Faro, e de Faro pegaríamos um trem para Lisboa. Seria uma viagem bastante cansativa, mas ao mesmo tempo instigante, pois eu nunca havia andado tanto tempo de trem (essa é uma das vantagens da Europa porque o sistema de trem funciona muito bem em vários países).
A viagem até Faro, capital do Algarve, transcorreu bem. Chegamos à cidade e o sol nos brindava. A fisionomia de Fer já era outra. Ele era solar, muito mais do que eu. Amo o sol, mas me identifico muito mais com a lua. Sempre fui da noite e ele do dia. Éramos realmente bastante diferentes, mas talvez nossas diferenças era o segredo para que nossa relação se mantivesse inabalável. Já estávamos indo para o terceiro ano juntos. Um completava o outro oferecendo o que faltava, e acima de tudo havia respeito, cumplicidade e torcida mútua. Era inegável que depois de tantos meses vendo só chuva, passando frio e fugindo do vento gelado, estar numa cidade solar e linda nos enchia de esperanças.
Assim que chegamos em Faro saímos para conhecer a cidade. O sol estava muito forte. Eu nem mais lembrava como era boa essa sensação de sentir o sol e a brisa do mar juntos, e um vento sem ser gelado na cara.




Faro havia nos presenteado com o seu melhor dia. Pisar na areia da praia de novo e sentir a água salgada do mar não tinha preço. Havíamos saído de Dublin e fazia frio, por isso, estávamos com calça e jaqueta, mas, em Portugal, o tempo já começava a melhorar em março. Apesar disso, a água ainda estava gelada. Eu conhecia bem Fer e sabia que ele nunca entraria na água com aquela temperatura, mas eu não tinha problema com isso.
Como a praia estava vazia, não tive receio de ficar só de cuecas e de mergulhar rapidamente. Não tinha toalhas e teria que me secar antes de entrar no trem, mas eu precisava daquele banho de mar. Eu acreditava muito no poder do mar. Era como um batizado, um encontro com as águas. Talvez isso tenha a ver com o elemento do meu signo de Câncer: água! Entrar naquele mar foi libertador, restaurador e mágico. Foi como se eu pedisse para que as águas daquele mar levassem para bem longe de mim todos os problemas. Eu pedia mais do que tudo uma oportunidade. Eu pedia para que o trabalho do Fer desse certo e que eu também conseguisse algo. Depois de tanta frustração sem emprego na Irlanda era hora de sorrir de novo.
Sempre tive muita ligação com o mar, por isso, ele acabou sendo algo recorrente nas minhas histórias como roteirista. Duas novelas me marcaram por diferentes razões porque ambas tinham cenas fortes com o mar. A primeira delas, um clássico da teledramaturgia e que marcou uma geração inteira: “A Gata Comeu”, de Ivani Ribeiro. Até hoje, mais de 30 anos depois de sua exibição, existem grupos na internet que comentam as cenas e organizam viagens para as locações da história gravada no bairro carioca da Urca.
Na trama, um grupo de crianças e adultos ficavam perdidos numa ilha deserta após a explosão de uma lancha e eram dados como mortos. E ali naquela ilha começava a nascer o amor entre o casal protagonista Jô Penteado (Christiane Torloni) e Fábio (Nuno Leal Maia). A química saltava da tela. Acho que meu espírito aventureiro nasceu ali com aquelas crianças. Na época, eu também era uma delas, e queria ser um “Curumim”- nome dado ao grupinho secreto deles. Anos depois, levei a ideia do clubinho para o meu projeto de série de TV, “O Talismã”, que fala sobre o bullying. As aventuras daquela turminha na ilh me fazia querer ser um deles.
Décadas depois, em 2001, eu consegui acompanhar apenas o comecinho da novela “Porto dos Milagres”, de Aguinaldo Silva, pois estava de viagem marcada para a Irlanda, mas o início da história que mostrava um naufrágio em alto mar nunca mais saiu da minha cabeça. Foi algo impactante. Isso se for para citar apenas novelas porque era inegável também na minha memória afetiva as lembranças de Titanic. Mesmo amando o mar, eu sempre tive muito respeito e medo dele. Não me atrevo a nadar até hoje se não posso sentir os meus pés. Nisso, eu necessito de segurança. Tenho medo das ondas me levarem para o fundo.
Estar em Faro mesmo que por poucas horas me fez muito bem. Assim como Fer eu estava precisando tirar aquela cor branca dos vampiros (mesmo idolatrando as histórias deles). O banho de mar e de sol haviam me dado uma energia extra. Era hora de pegar o trem e seguir viagem. E era justamente ali que começaria nossa grande aventura. Nossa alma cigana havia nos levado para outro país. Por sorte não teríamos problema com o idioma, algo que já acontecia em Dublin, mas era uma total loucura chegar a um outro país sem nem ter onde ficar. Íamos dormir na rua????
Acho que naquela época realmente eu estava um pouco perturbado (risos), pois mesmo sendo tão aventureiro eu não podia ser tão irresponsável de ir para um outro país sem nenhum lugar para dormir. Ou talvez eu recorreria à mágica de Monteiro Lobato e ia usar o pó de pirlimpimpim da Emília para me teletransportar para diferentes lugares? Magia tinha limite. O problema era eu, pois eu não tinha limite.
DICA: Sonhar é bom, nos faz bem e nos dá motivação, mas também precisamos manter os pés no chão quando estamos fora de nossa zona de conforto, e isso eu fui aprender dia após dia com os percalços que a vida de imigrante foi colocando diante dos meus olhos e de minha caminhada. Hoje, faria muitas coisas diferentes. O primeiro conselho que daria para a pessoa que deseja viajar seria o de fazer um planejamento e ter o mínimo de estrutura e segurança para desembarcar em um país estranho.
A viagem até Lisboa transcorreu normalmente. O sol e o calor que haviam feito durante o dia nos deixaram cansados e acabamos dormindo um no ombro do outro. Acordamos com o trem parando na estação do Oriente, em Lisboa, inaugurada em 1998, para receber a Expo 98, que revolucionou a capital portuguesa em questão de modernidade (falarei sobre isso em outro capítulo).
Fora da estação realmente caiu a ficha. Precisávamos de um lugar para dormir. Isso era o mais importante e urgente. Fernando havia pegado com o pessoal do escritório somente o local onde seria a entrevista na próxima semana. Viajamos numa sexta-feira de manhã e a entrevista dele seria na segunda-feira à tarde. Teríamos só dois dias até a data de sua seleção. Talvez o que nos deixasse um pouquinho mais tranquilo era o fato de ainda ter algumas economias. Então, na pior das situações, íamos buscar uma pensão ou um hotel barato. Dormir na rua não era uma opção.
Eu que já havia vivido em uma pensão horrível em São Paulo sabia que a experiência não era muito agradável. Em meus devaneios de roteirista pensava que teria a sorte de morar em “pensões amigáveis”, como havia visto em muitas novelas, como em “Fera Radical” ou “Coração de Estudante”. Nestas tramas, a convivência sempre era muito pacífica e deliciosamente gostosa de se assistir, mas eu vivia algo real, e muitas vezes, a realidade se pintava muito diferente da ficção.

Pois bem, decidimos pegar um ônibus e ir para o bairro onde ficava o escritório do O Boticário, em Lisboa. A gente não tinha nenhum outro lugar em mente. Desde que saí de Portugal nunca mais havia falado com meus amigos do restaurante e nem com o pessoal da casa onde havia vivido, e não porque eu não quisesse, mas por circunstâncias da vida que nos separam das pessoas sem que a gente perceba. Também agora eu vivia uma outra realidade: havia saído dali apaixonado por uma mulher: Déa, e agora retornava com um homem: Fer. Era tudo muito complexo e eu preferia evitar, de momento, aquele encontro. Não sabia como eles reagiriam.
Naquela tarde nós fomos percorrendo as ruas do bairro sem nenhuma direção em concreto. Já estava anoitecendo e a preocupação começava a bater mais forte. Foi então que algo me chamou atenção: havia um ponto de ônibus com vários papeizinhos colados. O conteúdo deles era diferente. Havia desde pessoas oferecendo serviços de limpeza, de pintura e de babá até quartos compartidos. Deus nunca tinha nos deixado até ali e não seria agora que isso aconteceria. Sem pensar, decidimos ligar para um dos quartos que estava no anúncio. Um rapaz atendeu e percebi que era brasileiro pelo acento. Ele foi extremante simpático comigo e combinamos de ver o quarto na mesma hora.
Por sorte, estávamos muito perto de sua casa. Independente de como fosse o lugar já tínhamos decidido que íamos ficar ali por um tempo até a gente conseguir se achar melhor na cidade. O rapaz que estava alugando o quarto, Leonardo, Léo, era bastante jovem. Trabalhava como garçom e era uma espécie de gerente da república. Na casa, além dele, viviam mais outros 13 meninos, todos brasileiros, e nenhum deles com documentação (trabalhavam no mercado negro, algo que é ilegal, mas que muitos empresários faziam para fugir dos impostos e ao mesmo tempo era o trabalho que restava para quem não tinha cidadania).
Confesso que fiquei um pouco constrangido em viver ali porque como já tinha tido tantas experiências negativas no passado com flatmates não sabia como seria dividir uma casa com 13 homens héteros. O que me deixava pensativo era que fossem homofóbicos, mas isso caiu por terra logo de cara porque Léo insistiu para que jantássemos com eles e ali mesmo eles fizeram questão de dizer que não havia problema nenhum da gente ser um casal. Foi legal isso partir deles, pois mostrava uma evolução com relação ao preconceito. Nunca vou me esquecer daquele macarrão à bolonhesa que ele nos serviu. Sem dúvida, foi o melhor macarrão que comi na minha vida.
Na verdade, não sei se estava bom ou é porque a gente tava com muita fome e saudade de comer algo que me lembrava a comida da minha mãe, pois todo sábado na minha casa era dia de macarronada. Era minha herança italiana falando mais alto.
O quarto era simples, mas tinha uma cama de casal. Estávamos tão cansados que no sábado dormimos até às 14h. Daí acordamos e fomos numa padaria tomar café. Eu já fui pro ataque aos doces portugueses. Sabia que eles seriam a minha tentação ali naquele país e eu voltaria a engordar se não me cuidasse, mas era impossível não se encantar pela maravilhosa e rica culinária portuguesa.
Minha mãe já havia feito uma encomenda para mim: a de quando eu voltasse ao Brasil desse um jeito de levar na mala novos doces de Portugal (ela tinha se apaixonado pelos pasteizinhos de nata que eu havia levado da primeira vez, mas, agora, eu levaria os da fábrica original, em Belém, já que ela merecia).
Como lhes disse anteriormente, minha mãe, impossibilitada pelas artimanhas do destino, teve muitos dos seus sonhos interrompidos aos 36 anos após ser atropelada num racha entre dois motociclistas. Com isso, perdeu o movimento dos pés, mas nem por isso, deixou de sonhar. Ela acreditava que um dia ainda teria condições de fazer um cruzeiro com toda família e conhecer os lugares que só via pelas novelas. Então, enquanto não podia realizar seu sonho, ela os depositava em mim. Ela era uma eterna aventureira. Numa comparação com uma personagem poderíamos chamá-la de “Peter Pan”, no caso, era a nossa “Peter Pan de saias” .(ainda lhe dedicarei um capítulo especial no ano de 2015, o pior ano de minha vida).
Voltando à nossa rotina portuguesa, passamos bem o final de semana conhecendo a área que estávamos instalados. Era um bairro bastante aconchegante e familiar, mas uma das coisas que mais me chamou atenção desde minha primeira vez, e agora de novo, era a arquitetura das casas em Lisboa. A maioria das pessoas viviam em pequenos apartamentos, e as terraças eram incríveis com muitas flores, além de roupas penduradas num varal improvisado, o que dava um colorido todo especial e charmoso à cidade. Apesar de não conhecer aquelas pessoas, era como se estivéssemos mais próximos delas, pois o simples fato de saírem para as sacadas para recolher e estender suas roupas ou regar as plantas já nos aproximava.
Dava uma vontade tremenda de falar com aquela gente, saber curiosidades sobre as suas vidas, enfim, fazer amizade. Não posso negar minha veia jornalística. Eu amava descobrir histórias de vida entre pessoas desconhecidas. Sempre me considerei um repórter de rua, e Lisboa era um convite para quem amava boas histórias. A cidade por si só já era uma atração à parte, e não por acaso, hoje, é considerada um dos melhores lugares do mundo para se viver em termos de qualidade de vida. É por isso que Portugal se transformou nos últimos anos como um dos principais destinos de imigrantes brasileiros que tentam a sorte em outro país. Muitos vão para estudar, trabalhar, e outros para viver a aposentadoria.
E assim, entre muitos passeios pela vibrante Lisboa, passamos nosso final de semana. Não saímos muito da região onde estávamos hospedados, mas nem precisava porque como não conhecíamos nada, tudo para nós era novidade. Estávamos ansiosos mesmo pela chegada da segunda-feira quando Fer faria a entrevista em O Boticário e saberíamos nosso futuro. Ou teríamos um pouco mais de alívio com um dos dois trabalhando ou nossa luta teria que ser redobrada para sobreviver ali até o final do nosso visto.
Passei toda segunda-feira apreensivo e preocupado, afinal, era uma grande oportunidade para Fer. Era vez dele brilhar e eu como namorado tinha que estar ao seu lado apoiando-o em todas suas conquistas, afinal, assim se construíam relações duráveis e estáveis. Essa era a lição que havia aprendido com meus pais que estavam casados há quase 40 anos. Quando minha mãe mais necessitou de apoio, de ajuda e de alguém forte, que foi nos anos pós-acidente e até seu último respiro, era meu pai que estava ao seu lado. Isso era amor, e era nisso que eu me apegava para construir a minha história depois de tantas decepções que havia tido.
Naquele dia o tempo não passava. Já tinha caminhado, andado por quase todo o bairro, ido ao mercado, e nada do Fer voltar da entrevista. Talvez a demora fosse um bom sinal, pois se uma seleção dura muito tempo é porque os recrutadores estão gostando do candidato, e nesse quesito Fer era PHD. Tinha carisma de sobra e tenho certeza que se o tivessem colocado para fazer uma maquiagem como prova ele teria tirado 10 na prova, pois havia se transformado num excelente maquiador e feito, inclusive, workshops com um dos mestres da maquiagem brasileira: Fernando Torquato.
Quando escutei o barulho da fechadura do quarto se abrindo saltei da cama em um só pulo. Ele mesmo que tentasse esconder ou simular tristeza não era um bom ator. Sua cara revelava seu estado de espírito, e a imagem que eu via em seu semblante era de felicidade. Ele correu até mim, me abraçou fortemente e me disse ao pé do ouvido: “Dé, a gente conseguiu. Brigadooo por tudo”. Ouvir aquilo me emocionava, pois me fazia sentir parte de sua vida. Ele tinha usado a frase “a gente conseguiu” e isso dizia muito sobre nós. Éramos um casal.
Lutávamos juntos e qualquer derrota ou vitória, o outro estava do lado, e ele reconhecia em todo aquele processo que eu havia deixado o meu sonho do intercâmbio da Irlanda para ajudá-lo a viver o seu sonho em Portugal. Por outro lado, ele havia decidido viajar comigo para fazer aquele intercâmbio no seu melhor momento profissional no Brasil. Era uma troca de ações e de sentimentos, e era isso que nos unia e nos deixava fortes.
Mas era hora de comemorar. Merecíamos aquele momento. “Roubamos” duas taças de vinho do armário da cozinha, passamos no mercado e compramos pão, queijos, frutos secos e algumas frutas, e claro, que alguns docinhos de sobremesa (essa parte ficava sempre para mim, pois Fer não gostava muito de doces e eu sempre acabava comendo o meu e o dele também). Tínhamos que ir para um lugar especial. Eu queria apresentar a ele um dos cartões postais mais famosos de Portugal, reconhecido mundialmente pela sua beleza: o rio Tejo.
Aquele brinde tinha que ser em um lugar especial. Em termos de comparação poderíamos pensar que se estivéssemos no Rio de Janeiro, por exemplo, o brinde seria aos pés do Cristo Redentor; em Paris, de frente à Torre Eiffel. Se voltássemos para a Irlanda, claro, sem dúvida, seria na Spire, que era o ponto de chegadas e partidas naquela cidade e o nosso cantinho especial.
E em Portugal, a beleza do rio Tejo a qualquer hora do dia era algo inspirador e nos deixa sem respiração. E quando se soma ao por do sol o cenário então era um brinde ao deleite, algo de cinema, realmente. De qualquer ângulo que olhássemos seríamos brindados com sua beleza estonteante. Os raios solares refletindo em suas águas deixavam tudo ainda mais belo. Escolhemos a zona ribeirinha do Belém porque a vista desde ali era uma das melhores. Tínhamos levado uma toalha e decidimos fazer nosso brinde ali mesmo.
Antes de tomar o vinho ficamos alguns minutos em silêncio. Era o nosso tempo para agradecer. A gente sabia que não tinha sido fácil chegar até ali, e ne imaginávamos o que ainda passaríamos de provação, e elas vieram, mas estávamos juntos e com saúde, e isso é o que importava. Fizemos nosso brinde e ficamos novamente em silêncio só olhando a beleza daquele lugar. A vida, muitas vezes, é muito fácil. Somos nós quem a tornamos difíceis.
Bastava refletir um pouco sobre tudo o que estava acontecendo. Uma porta havia sido fechada em Dublin, e eu estava triste por isso, natural, mas ao mesmo tempo, outra janela havia sido aberta em Portugal, e desta janela outros horizontes poderiam ser vistos. Quem ousaria nos dizer que não íamos conquistar nosso espaço em Portugal? E o que nos impediria de um dia voltar a Dublin e terminar o nosso intercâmbio?
Havíamos feito o mais difícil que era ter tomado a decisão de sair de casa. O restante das coisas viria por consequência. Era momento de celebrar e de agradecer por estar ali. Quantos pessoas gostariam de ter a oportunidade de ter um minuto que fosse de suas vidas num país diferente vendo um por do sol, e nós havíamos chegado até ali. Quem diria que não viriam outros países pela frente??? E conhecendo minha alma cigana como vocês já conhecem sabe que isso era algo muito possível de ser realizado.
UMA REVISTA PRESTES A CAIR NO BUEIRO ERA A MENSAGEM QUE O DESTINO ME ENVIAVA QUE MINHA HORA ESTAVA CHEGANDO
Com o passar dos dias, eu via nitidamente uma mudança no comportamento de Fer. Ele estava muito mais leve e feliz. O trabalho estava lhe fazendo muito bem. Ele tinha conhecido pessoas novas, ia a lojas diferentes e não tinha nenhuma rotina. A ideia era que começasse a viajar em breve para outras cidades. Tudo estava indo maravilhosamente bem para ele, mas eu também queria conquistar minhas coisas. Eu também merecia ter o meu momento.
Já tinha percorrido diferentes regiões daquela cidade em busca de trabalho. O problema é que as vagas estavam muito restritas por causa da crise. Eles só contratavam alguém caso alguma pessoa estivesse se desligando do trabalho. Então, era uma substituição, e para essa vaga sempre haviam muitos candidatos de reserva. Pesava contra mim o fato de eu ser imigrante sem documentação. Fer ainda havia tido a sorte de ter um contrato de trabalho temporário, mas eu não perdia a esperança de encontrar algo, e isso aconteceu inesperadamente.
Estava voltando para casa depois de mais um dia de intensas buscas- havia ido distribuir currículos no Centro Comercial Colombo- o maior shopping center que eu já havia entrado na minha vida. Tinha percorrido todas as lojas e deixado meu currículo naquelas que eu via plaquinhas de busca de empregados (imprimir currículo para ser jogado fora não era a solução porque até mesmo a impressão era cara).
Naquela tarde eu voltava para casa bem desanimado, pois era humano e tinha meus momentos de queda. Ia andando pela rua um pouco cabisbaixo quando olhei para o chão e vi uma revista jogada. Eu sempre amei ler, seja jornal, revista, qualquer coisa que caia nas minhas mãos eu leio. Tenho que abrir um parênteses e contar algo engraçado.
Desde muito pequeno peguei a mania de ler no banheiro. Minha mãe deixava gibis ali, principalmente os da “Turma da Mônica”. Eram os meus preferidos. E isso era um pretexto para passar mais tempo na “casa de banho”, como os portugueses chamam o banheiro.
Vendo a revista prestes a cair no bueiro não pensei duas vezes e a recolhi rapidamente. Era uma “revista maltratada”. Seguramente alguém a havia perdido e ela acabou indo parar ali. Estava um pouco rasgada, mas ainda dava para ler o seu conteúdo. Era uma revista de fofocas como as que tínhamos antes no Brasil falando dos artistas, dos capítulos das novelas, e eu sempre gostava de ler.
No caso de Portugal, eu não tinha tido esse interesse de ler revistas dali porque não conhecia as novelas portuguesas e muito menos os atores, exceto o galã Ricardo Pereira, que já havia feito alguns trabalhos no Brasil. Porém, uma matéria na capa me chamou a atenção. Falava da influência das novelas brasileiras em Portugal e de como o mercado de teledramaturgia havia se aquecido nos últimos anos com a ida de muitos profissionais brasileiros para Portugal. raças a eles, o país, agora, havia ganhado o status de grande produtor de telenovelas- uma das paixões dos portugueses, assim como dos brasileiros. A reportagem citava ainda que um brasileiro estava por trás de uma das emissoras que havia começado a investir em telenovelas. Não pensei duas vezes. Era o universo me dando uma oportunidade.
Eu não acreditava muito em coincidências, mas sim, em destino. E eu sabia que Deus havia reservado algo para mim depois de tantas provações. Fiz um e-mail caprichado, coloquei ali meu coração, e para minha surpresa na mesma tarde a secretária dele me ligou marcando uma entrevista.
Seria um sonho??? Se fosse, eu não queria despertar. Talvez eu tive que deixar meu sonho do intercâmbio na Irlanda porque Deus tinha algo reservado para mim em Portugal, e essa resposta veio justamente de algo descartado no lixo. Muitas vezes, a resposta para nossas questões vem de onde menos esperamos e eu fui encontrá-la justamente num bueiro. Isso provava que Deus trabalhava na minha vida em silêncio. Como comecei esse capítulo com sonho vou terminá-lo assim: sonhando! Sempre haverá um novo amanhã e um novo recomeço para colocarmos nossos sonhos em ação.
VEM AÍ: Como será que foi esse meu encontro com esse executivo numa TV portuguesa e por que fui parar em Cascais? Conheça o desfecho desta história e muito mais no próximo capítulo. Contarei sobre uma reviravolta na minha trajetória até ali, o furto de dinheiro dentro de minha casa, nossa mudança de cidade, e o começo de uma nova jornada cheia de descobertas incríveis.

