Diário de um imigrante- Cap 2

Um complexo e um trauma de adolescência foram os responsáveis pela minha “fuga” do Brasil e a tentativa de um recomeço em Portugal

Dando sequência à minha série “Diário de um imigrante” no relato de hoje vou contar, em detalhes, porque isso é importante para que entendam o contexto da minha trajetória, a principal razão que me levou a sair do Brasil e me mudar para Portugal pela primeira vez- eu voltaria anos depois para viver de novo e em uma situação totalmente diferente.

Era setembro de 2001. Assim que passei pela imigração no aeroporto de Lisboa e cruzei a porta para o saguão principal eu sabia que não havia mais volta. Eu estava fora do Brasil, distante da minha família e dos meus amigos, e a partir daquele momento era importante ter consciência que mais do que nunca eu seria responsável pelas minhas ações e teria que estar preparado para as consequências. No Brasil eu tinha o amparo da minha família. Agora era diferente. A lei da sobrevivência batia forte, e eu sabia que minha primeira ação era ir ao banheiro e me libertar daquele problema que me afligia há anos. Era por essa razão que eu havia viajado e se não tivesse coragem de fazer aquilo ali no banheiro, ou seja, de libertar-me daquele peso naquele instante eu não teria forças para fazê-lo depois.

Pois bem: vamos aos fatos! Até 2001 eu já havia cogitado fazer algum intercâmbio de idiomas no exterior, pois sonhava em conhecer culturas diferentes e ter uma nova experiência de vida. Nessa época, eu era praticamente um recém- formado jornalista em início de carreira. Amava minha profissão, mas quando decidi imigrar não foi exatamente buscando um novo trabalho na área. Eu saí do Brasil porque precisava me aceitar como eu era e se eu não fizesse isso não conseguiria avançar em nenhum campo de minha vida, principalmente o profissional.

Explico: aos 17, 18 anos, comecei a perder cabelo de uma forma muito acelerada e isso foi me deixando reprimido e frustrado. Já começavam os comentários maldosos: “ih, tá ficando careca”, “melhor você passar uma máquina zero porque não adianta disfarçar”. E assim por diante. Para muitos isso pode parecer uma besteira, algo fútil ou muito pequeno diante de tantos outros problemas mais sérios, mas não para um adolescente ainda tentando se firmar, cheio de dúvidas e de incertezas- que somente mais prá frente foram desvendadas-. Então, sem outro caminho passei a usar bonés. Eles eram como uma “muleta” para mim. Eu não saia do meu quarto sem estar com eles. Ninguém me via sem boné nem mesmo os meus pais e minha irmã. Era algo que me machucava no fundo da alma. Na hora que ia dormir colocava ao lado do travesseiro e fechava a porta com medo que alguém entrasse. Eu mesmo não conseguia me olhar no espelho. Tomava banho e trocava de roupa no banheiro, escovava os dentes sem olhar no espelho, tamanho era o meu complexo. Só saia com o boné na cabeça. Nem mesmo na hora das refeições em família eu retirava.

Nessa época, eu só conseguia me olhar quando estava de boné e mesmo assim era um olhar triste e vazio, pois eu sentia que me faltava algo. Evitava ir a lugares onde sabia que teria que ficar sem boné, como piscina e praias, por exemplo. Uma única vez decidi desafiar esse complexo e fui com meus amigos acampar. O lugar era lindo, cheio de piscinas e cachoeiras. Eu evitava ir na mesma hora que eles para a piscina e quando ia não tirava o boné nem mesmo dentro da piscina. Não afundava a cabeça para não ter que tirá-lo. Hoje me recordo disso e vejo como era algo forte e espiritual e que me impedia de ser feliz justamente numa das fases que estava despertando para a sexualidade e onde era normal todos se arrumarem para as “festinhas” passando gel no cabelo, mudando o penteado e eu não tinha o que fazer.

Se eu fosse às festas, corria o risco de alguém arrancá-lo de minha cabeça, por isso, comecei a me isolar socialmente.  Deixei de ir a todas as festas, aniversários e até casamento de familiares por complexo. Tinha uma prima que eu gostava muito, uma das minhas preferidas, e eu não fui ao seu casamento por não querer usar boné. Isso me machucou muito. E quando cheguei à faculdade eu tive que me abrir um pouco mais para o mundo, mas engana-se quem pensa que eu me soltei completamente. Sempre fui um excelente aluno, já amava minha profissão, mas continuava me escondendo por trás de um acessório. Só que eu sabia que se quisesse terminar o meu curso eu teria que, obrigatoriamente, cursar uma das disciplinas da grade: TV. Todo curso de jornalismo passa por essa disciplina e as aulas práticas incluem gravações de reportagens. Não pegava bem fazer uma gravação com boné, sem contar que minha professora também não aceitaria. Eu precisava tomar uma decisão rápida, já que as aulas práticas de TV estavam chegando e seriam no terceiro ano da faculdade.

E foi assim que recorri às próteses capilares- naquela época muito artificiais e feitas com uma técnica dolorosa-. Eles amarravam o restante dos cabelos da pessoa com a prótese e  iam costurando os fios. Durava mais ou menos um mês e logo os fios começavam a se soltar e era preciso fazer uma manutenção. Mesmo a contragosto eu acabei optando por elas. Eu não estava feliz. Eu sabia que as pessoas por trás iam comentar que eu estava usando peruca e o complexo era tão maldito que, na minha cabeça, qualquer pessoa que me olhasse por mais de dois segundos era porque estava olhando para minha peruca. Esse foi um processo bastante doloroso e de muitas etapas diferentes, mas consegui me formar com louvor na faculdade e até um dos meus melhores trabalhos na universidade foi como apresentador de um programa de TV, e tudo isso usando aquele acessório estranho, mas que serviu por muitos anos para não me deixar enclausurado dentro de casa.

Para quem chegou até aqui deve estar se perguntando: mas o que tudo isso, esse relato emocional e pessoal tem a ver com imigração e com Portugal? TUDOOOO. Sabe por quê ? Porque foi justamente para me livrar das perucas que eu decidi sair do país. Loucura, não? Precisava ir tão longe para se libertar de um problema pessoal com tantas cidades no Brasil?  Se você me fizesse essa pergunta hoje eu diria que não e que eu estava louco, mas somente eu sabia no meu íntimo como tudo aquilo havia me machucado nos últimos anos. Foi um ato desesperador e um pedido de socorro.

E o ponto de virada para essa decisão foi um churrasco de família. Era Carnaval. Família e amigos reunidos numa chácara para passar os quatro dias de festa. Cenário perfeito para a minha “tragédia pessoal”. Eu havia bebido um pouco mais da conta- isso porque não gosto de beber-, e no primeiro mergulho com a piscina lotada de pessoas, o golpe fatal: a peruca saiu da minha cabeça e ficou boiando. Quando eu percebi já não tinha mais o que fazer. Eu estava tão envergonhado que não tinha coragem de sair da água. Minha cabeça estava afundada como a de uma tartaruga dentro do seu casco. Lembro que um primo sabendo o quanto aquele assunto me perturbava tratou de mergulhar para “resgatar” a peruca e a colocou na minha cabeça de qualquer jeito. Em seguida me deu um boné para que eu me sentisse mais seguro e pudesse ao menos sair da piscina.

A sensação que eu tinha era de uma cena de um filme em câmera lenta na qual todos os personagens em diferentes pontos do cenário me olhavam para saber qual seria minha próxima ação. Com exceção desse meu primo ninguém mais teve coragem de se aproximar de mim porque eles sabiam que eu não lidava bem com o assunto.

Assim que saí da água fui correndo para um banheiro e pedi para que chamassem meu pai. Quando ele chegou na porta eu estava aos prantos e supliquei para que me tirasse dali e me levasse para casa. Eu não suportaria encarar de frente meus amigos e familiares. Meu maior segredo que, na verdade, não era segredo, havia sido revelado e todos agora me conheciam sem peruca.

Fiquei sabendo depois que minha mãe naquela tarde sabendo do meu sofrimento fez a promessa de não comer doces por um tempo caso eu retornasse para a festa, e eu sei que para ela era muito difícil cumprir isso, mas amor de mãe é incomparável. Elas são capazes de tudo por um filho, e não sei se foi pela fé dela, mas milagrosamente eu tive coragem de voltar horas depois.

Durante esse período todo que fiquei usando as próteses, principalmente as últimas que eram mais modernas e coladas com adesivos ao invés de amarradas, a única pessoa que havia me visto e que me ajudava colocá-las era minha irmã, Isabela, e mesmo assim, eu tinha dificuldade de encará-la de frente, mas ela era o meu anjo na terra e acabei me tornando muito dependente da sua ajuda. Sexta-feira à tarde era o dia que ela renovava os adesivos e eu me sentia ao menos mais protegido por uma semana.

Naquele fatídico dia ela me abraçou muito e disse que todos estavam muito tristes com minha saída da festa e que o Carnaval acabaria ali caso eu não voltasse porque não teria lógica eles continuarem a festa enquanto um estaria em casa sofrendo.

Depois de muita insistência dela e do meu pai acabei voltando para a festa, mas eu sabia que isso seria temporal. Meses depois aconteceu de novo e foi ainda pior: a prótese caiu numa discoteca e eu havia bebido muito (bebia como fuga) e meus amigos me encontraram deitado na calçada e me levaram para um pronto- socorro onde me deram injeção de glicose e amarraram um lençol na minha cabeça para que eu chegasse em casa . Era madrugada e quando meu pai me viu chegando em casa daquele jeito levou às mãos à cabeça pensando que eu havia sofrido um acidente.

Graças a Deus não havia sido um acidente, mas foi o ponto determinante para que eu tomasse uma decisão radical: quero sair daqui por um tempo e tentar me libertar disso sozinho. Coincidentemente nessa época eu tinha um amigo que havia se mudado para Portugal e que sabia de tudo o que havia acontecido comigo na chácara e na discoteca. Vendo a minha angústia ele me fez o convite certeiro: “Por quê você não vem para Portugal e tenta se libertar disso? Aqui você não conhece ninguém e se você quiser eu te evito no começo até você se acostumar”.

Eu estava tão desesperado que não pensei duas vezes. Eu disse que iria. Em menos de 15 dias estava com a passagem comprada. No entanto, mais uma vez, o destino se encarregou de pregar uma de suas peças em minha trajetória. Ironicamente ou não colocou no meu caminho depois de muitos anos a única pessoa que eu havia amado em toda minha vida até aquele momento. Era um amor de adolescente, uma paixão arrebatadora que levei para a vida adulta, mas era um sonho proibido porque ela havia se casado e tinha dois filhos.

Apesar disso eu sempre me perguntava como seria caso a gente se reencontrasse um dia. E, novamente, o senhor destino decidiu me testar colocando-a no meu caminho a poucos dias da minha viagem. Ela apareceu subitamente, começou a me ligar, dizia que estava infeliz no casamento, que ainda me amava e que havia casado por carência e não por amor.

Mas existia dois bloqueios importantes nesse reencontro: ela ainda estava casada, mas queria me reencontrar antes da minha ida à Portugal e não tinha coragem (eu não havia contado o real motivo da viagem). Por outro lado, eu não tinha peito e estrutura para revê-la depois de tantos anos e confessar que usava peruca.

Qual o final desta história? Vocês creem que a Déa e eu nos encontramos? Em caso positivo, eu contei para ela toda verdade sobre a minha viagem? Como foi esse reencontro? Ou será que eu viajei direto para Portugal deixando esse amor sepultado no passado? Como foi que me libertei da prótese e recomecei uma nova vida em Portugal? Tudo isso e um pouco mais serão os temas do terceiro episódio da série Diário de um imigrante.   

Jornalista, roteirista, escritor e ator brasileiro com mais de 20 anos de experiência em comunicação.Vivo atualmente em Barcelona onde trabalho como correspondente internacional, mas já morei em outros países, como Portugal, Irlanda, EUA e Itália onde sempre estive envolvido com projetos na área de comunicação- minha grande paixão-.Como roteirista, destaco a coautoria na sinopse e no 1 capítulo da novela "O Sétimo Guardião" (TV Globo/2019), o documentário "Quem somos nós?", sobre exclusão social, e o curta-metragem "As cartas de Sofia".Como repórter, trabalhei em grandes grupos de comunicação no Brasil, como RBS, RAC e RIC. Ganhei o prêmio Yara de Comunicação (categoria impresso) em 2013 com uma reportagem sobre as diferentes famílias e histórias de vida às margens do rio Piracicaba (SP). Fui finalista do prêmio Unimed de Jornalismo/SC com uma reportagem sobre gravidez precoce.

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