Sonhos de um menino transformados em realidade na vida adulta

O roteirista e escritor carioca Eduardo Nassife ao lado de duas de suas criações: as biografias da atriz Gloria Pires e do apresentador Chacrinha

“Eu já fui cabo de vassoura, confesso. Um cabo de vassoura como tantos outros. Seria longo contar tudo o que tenho passado nesta longa vida, desde que me arrancaram da árvore em que fui tronco e me levaram a uma oficina, onde fui cortado, torneado e mil coisas sofri, até conhecer a nova função que me reservava o destino”. O universo mágico e infantil de Orígenes Lessa, retratado no livro “Memórias de Um cabo de vassoura”, se entrelaça ao destino de um ainda menino nascido no subúrbio carioca que sonhava por meio dos livros, desenhos, pinturas e histórias com um mundo de fantasias. Esse mesmo menino sonhador e criativo cresceu, virou homem e seus sonhos, até então, restritos ao mundo da imaginação ganharam asas e vida própria transformando-o num dos jovens talentos da nova geração de roteiristas do Brasil. Eduardo Nassife é escritor de duas biografias de sucesso: da atriz Gloria Pires e do apresentador Chacrinha, além de ter sido um dos colaboradores e pesquisadores da novela “Fina Estampa”, (TV Globo/2011).    

Nesta entrevista exclusiva ao blog “Desejo de Viver”, Nassife revela detalhes sobre o processo de escrita de suas biografias, o trabalho em Fina Estampa e se posiciona fortemente sobre a importância da representatividade na teledramaturgia para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. “Representatividade também é reparo histórico”. Consciente do poder e da importância da TV, ele ressalta que tem surgido avanços importantes com relação ao combate ao racismo, como a série “Encantado´s”, por exemplo, -formada exclusivamente por negros (de autores, atores à direção)-, mas que a voz deve ser dada a eles: os negros. “É preciso acabar com essa ideia do preto hiperssexualizado, do preto bandido, morador de comunidade, que está sempre com uma arma na mão. É um trabalho de decolonização, até, ainda que a realidade de negros ocuparem esses lugares na sociedade, em posições de destaque, e com ascensão, esteja distante. O abismo social é muito grande. Somos um dos países mais desiguais do mundo”, critica.

Fã incondicional da novela “Vale Tudo”- a melhor de todos os tempos em sua opinião- e de outro clássico da TV, a novela “Tieta”, Nassife participou de um desafio proposto por mim ao reescrever o final de uma novela (a escolhida foi o remake de “Mulheres de Areia”, protagonizado pela atriz Gloria Pires). Ele confessa que gostaria de escrever a biografia da ex-presidente Dilma Roussef e da modelo e apresentadora Elke Maravilha (falecida em 2016). “São mulheres incríveis, de quem sou fã, que inspiraram e continuarão inspirando por muito tempo outras mulheres”. Sobre projetos futuros, contou que tem “na manga” um seriado biográfico. “Ainda não posso dar muitos detalhes. Vou esperar se concretizar para, aí sim, falar”. Como roteirista, ele diz que sonha em escrever sua própria novela e de trabalhar mais com o cinema.

Conte-nos um pouco sobre sua infância, adolescência e universo familiar. Você foi criado numa família de artistas? Teve apoio dos pais? Como foi o seu despertar para a escrita? Você já gostava de ler, de escrever? Há alguém mais na família que foi para essa área?

EN :Nasci e cresci no subúrbio carioca. Tive o privilégio de ser filho de pais maravilhosos, que me apoiaram em tudo. Minha infância foi tranquila. Sempre gostei muito de estudar, de ler, de desenhar, pintar e escrever historinhas. Meu pai sempre me incentivou, desde muito pequeno, à leitura. Quando eu ainda estava sendo alfabetizado, ele comprava gibis, livros, sentava e lia para mim. Tenho a lembrança dele sair bem cedo para trabalhar e deixar desenhos – palhaços, animais, personagens da Disney e etc. – que ele mesmo desenhava, para eu pintar quando acordasse. Mas, por ser de uma família sem muita grana, meus pais faziam o possível, dentro do alcance deles. Estudei em escola pública numa época em que o ensino público era muito bom e muito qualificado. Tive excelentes professores que também incentivavam muito a leitura. Lembro do primeiro livro que li na vida, aos sete anos: “Memórias de um Cabo de Vassoura”, do Orígenes Lessa.

 O seu despertar como escritor quando se deu?

EN: Quando eu estava na 4ª série primária (hoje, 5º ano), em 1991, estudava em escola pública e propus à professora que colocasse a prova final com nota valendo até cinco pontos. E os outros cinco ganharíamos ao montar uma peça (com todos da turma) sobre a Escolinha do Professor Raimundo. Eu tinha o álbum do programa e fiz o roteiro, copiando as frases que vinham no álbum. A professora topou na hora e, em um mês, montamos a peça, com todos caracterizados como seus respectivos personagens. Fez tanto sucesso, que fomos convidados a encená-la em outras escolas. Nessa peça, fiz o papel do Seu Boneco. rs

Ainda na infância, Nassife teve o despertar pela escrita criando uma peça de teatro baseada na Escolinha do Professor Raimundo (TV Globo). Coube a ele, o personagem do Seu Boneco

Em 1989, quando a novela “Tieta” estava no ar, eu tinha o hábito de fazer um resumo do capítulo, quando terminava a trama e escrevia em um caderno. Eram tipo os resumos que vinham publicados nos jornais. Todo dia, terminava o capítulo, eu corria para o caderno e escrevia a data e o que tinha acontecido naquele dia. Fui o único da família a enveredar por esse caminho, ligado à arte e cultura. Parte da minha família é formada por funcionários públicos e outra parte trabalha em área burocrática. Tenho só um primo que é jornalista, mas atua como chef de cozinha.

Nassife tinha o hábito de fazer o resumo de todos os capítulos da novela “Tieta”, outra referência no seu universo da teledramaturgia ao lado de “Vale Tudo”.

Como surgiu o projeto da biografia da atriz Gloria Pires?

EN: No final de 2001, propus à Gloria escrever a sua biografia. Ela relutou, disse que ainda era muito nova para ter uma biografia completa – ela tinha 38 anos nessa época. Então, eu fiz uma contraproposta: “Que tal uma biografia focada na sua vida profissional? Falaremos, claro, da vida pessoal, mas o foco é a carreira. Você começou muito nova, fez muita coisa na TV, no Cinema, certamente, tem muita história para contar!”, e aí ela se convenceu e começamos a empreitada. Ela estava começando a se preparar para gravar “Desejos de Mulher”, que estrearia logo em seguida, em janeiro de 2002. Seria, inicialmente, em comemoração aos 30 anos de carreira dela. Fiz várias pesquisas, entrevistas, revirei o CEDOC, da Rede Globo, quando ainda era numa salinha pequena no Jardim Botânico. A Globo me cedeu várias fotos da carreira da Gloria, e tudo o que eu precisasse. Porém, meu pai sofreu um acidente, ficou meses internado, teve fraturas expostas, enfim, um horror. Seu tratamento e sua recuperação total levaram anos. Nesse período, eu engavetei o projeto da biografia.

Nassife convenceu Gloria sobre escrever uma biografia focada na sua vida profissional

E a parceria com o Fabrício Fabretti? (coautor da biografia)

EN: Eu não era amigo do Fábio Fabretti. Nós nos conhecíamos apenas de vista, de festas e eventos culturais, mas temos um grande amigo em comum, que nos apresentou e ficamos amigos. E, na altura, meu pai já estava quase recuperado, e decidi retomar a biografia. Então, como eu sabia que o Fábio já era um autor profissional e tinha lançado livros, eu o convidei a ser coautor da biografia da Gloria. Eu o apresentei à Gloria, e então reescrevemos muita coisa, fizemos mais entrevistas e nos aprofundamos um pouco mais na vida pessoal dela. É um trabalho que eu, particularmente, adoro. Tenho muito carinho por esse livro e sou eternamente grato à Gloria pela oportunidade que ela me deu.

Gloria Pires ao lado dos autores de sua biografia: Eduardo Nassife (à esquerda) e Fábio Fabretti (à direita)

 Existe a possibilidade de reescrever uma biografia acrescentado os novos trabalhos do biografado? Se sim, você teria interesse em fazer isso com a da Gloria ou escreveria um novo livro sobre ela?

EN: O livro conta a história dela até 2010, quando foi lançado. Tenho interesse de, no futuro, escrever a biografia definitiva da Gloria. Seria um novo livro, com novas fotos, novos depoimentos, histórias ainda inéditas. Mas, por enquanto, ainda é um projeto para o futuro, então, se rolar, falarei dele no tempo certo, rs.

E a escrita da biografia do Chacrinha? Ele já estava morto quando você escreveu. Você crê que é diferente no caso de ser uma homenagem póstuma?

EN: Já para o livro do Chacrinha eu fui convidado. Um amigo meu, dos tempos de 2º grau, tinha se formado em Letras e trabalhava no mercado editorial. A Editora Casa da Palavra buscava o perfil de um escritor jovem, mas que tivesse experiência. Então, ele sugeriu o meu nome para a editora-chefe da Casa da Palavra, eles gostaram do meu perfil, já conheciam o meu trabalho e formalizaram o convite.

No caso de um biografado já falecido, o trabalho é muito maior. Primeiro, que você tem de contar com a memória de pessoas próximas, e isso nem sempre é confiável, pois há muitas informações erradas ou imprecisas. Segundo e o principal: você não tem a pessoa ali, para confirmar, para desmentir, para o autor se aprofundar mais na vida dela, sob o ponto de vista dela, não de terceiros.

Na biografia do Chacrinha, pude contar com a ajuda vital do Boni e sua preciosa memória. E de muitas pessoas próximas a ele. Escrevi a biografia do Chacrinha em parceria com o Denílson Monteiro, grande escritor, que já tinha uma bagagem de experiências muito rica, já havia escrito outras biografias, além de ser um cara super tranquilo de se trabalhar.

Nassife ao lado das falecidas ex-chacretes Marlene Morbeck e Sandra Mattera em visita à estátua de bronze de Chacrinha, em frente ao extinto Teatro Fênix, no no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, onde vários programas da TV Globo eram gravados, incluindo o Cassino do Chacrinha

Como foi trabalhar como colaborador em “Fina Estampa”? Como você avalia a novela como um todo e a sua experiência como colaborador? Gostou do resultado?

EN :Eu fiz a Master Class I do autor Aguinaldo Silva, em 2009 (oficina criativa de teledramaturgia que originou a novela Fina Estampa).O Aguinaldo foi um verdadeiro mestre com a turma: generoso, atencioso, ensinou tudo o que sabia, sempre muito educado e solícito. Ele estava sempre disponível, seja presencialmente na Master ou por e-mail, para sanar as dúvidas. Fui escolhido por ele para integrar a equipe de colaboradores com outros quatro colegas vindos da Master. No meio do processo, Aguinaldo me convidou também para ser pesquisador de texto da novela, acumulando as duas funções. Eu já tinha feito a pesquisa de texto para a biografia da Gloria Pires, e isso deu confiança a ele para que eu também ajudasse na pesquisa da novela. Colaborei bem pouco (capítulos iniciais). Depois, eu fiquei na pesquisa, cuja demanda era bem grande. Éramos três pesquisadores: eu e a Carla Siqueira, que fazíamos pesquisas diversas e com quem aprendi muito também, e a Mônica Mattos, que fazia toda a pesquisa jurídica.

Nassife participou de uma Master Class com o autor Aguinaldo Silva onde foi criada a história da novela Fina Estampa. Após a oficina, foi um dos alunos convidados para colaborador (depois pesquisador) da novela. O título foi uma sugestão sua.

E como foi essa experiência de mudar de colaborador para a área de pesquisa?

EN: Foi bem legal trabalhar com pesquisa. Tive momentos bem inusitados. Para fazer a pesquisa sobre taxistas, por exemplo, para a personagem da Arlete Salles, eu tive de pegar um táxi e ficar rodando pela zona sul do Rio por um bom tempo com o celular gravando a entrevista com o motorista. Pesquisava histórias que eles viviam, situações de perigo, engraçadas e diversas; as gírias que eles falavam, o que significavam aqueles códigos que eles falavam com a Central pelo rádio… Pesquisava tudo, com autorização deles, claro. Também fui fazer pesquisa de campo na Barra da Tijuca, onde passei algumas tardes inteiras entrevistando funcionários e donos de quiosques. Essa foi uma pesquisa para os personagens do Wolf Maya e da Totia Meirelles, Álvaro e Zambezi, respectivamente, que eram donos de um quiosque na novela. Também fui com a Carla Siqueira entrevistar donos de restaurantes e pizzarias, que era a pesquisa para o personagem do Renê e o núcleo do seu restaurante.

Fina Estampa foi o seu primeiro trabalho na TV com colaborador e pesquisador

E como foi a mudança na escalação da protagonista da novela? É verdade que, inicialmente, a protagonista havia sido pensada para a atriz Gloria Pires que foi remanejada para outro trabalho?
EN: Sobre a escalação inicial, sim, o Aguinaldo havia pensado na Gloria Pires como Griselda, e na Letícia Spiller como Teresa Cristina, reeditando a parceria delas de “Suave Veneno”, novela dele de 1999. Porém, a Gloria já estava reservada para a novela do Gilberto Braga, “Insensato Coração”, que veio antes de “Fina Estampa”. Gloria topou fazer a novela, mas o Gilberto Braga não a liberou. Ele alegou que a participação dela iria até os capítulos finais, o que inviabilizou a sua participação em “Fina Estampa”. Então, Aguinaldo rapidamente pensou na Lília Cabral e deu super certo.

“Fina Estampa” não é o tipo de novela que eu, se fosse autor titular, escreveria. Entendo o sucesso que fez por ser uma novela solar, um pouco mais “leve” do que suas antecessoras, com uma protagonista carismática, mas não é o estilo de novela que eu gosto, nem considero uma das melhores do Aguinaldo, que já escreveu grandes sucessos para a TV, como “Tieta”, “Roque Santeiro” e “Vale Tudo”.

Para mim, “Fina Estampa” tem um valor afetivo muito grande, pois foi a minha primeira novela. O título foi dado por mim. Sugeri alguns atores que foram escalados, mas falando apenas como espectador, não é o tipo de novela que me prende. Quando ela foi reprisada por conta da pandemia, revi o primeiro capítulo bem emocionado, pois passou um túnel do tempo na minha cabeça e a caixa de lembranças – boas e ruins – foi aberta. E sempre serei grato ao Aguinaldo pela oportunidade que ele me deu.

A trama de Estampa tem um valor afetivo grande para Nassife por ter sido a sua primeira novela.

Conte a sua experiência de ter convivido com o Gilberto Braga.

EN : Conheci o Gilberto através da Gloria Pires, que nos apresentou, há mais de 20 anos. Eu não tinha escrito nada profissionalmente. E a primeira vez que fui à casa do Gilberto, ele me perguntou o que eu gostaria de fazer na vida, em termos de trabalho. Eu era muito novo, tinha apenas 18 anos, e disse a ele que, desde criança, queria escrever novelas. Ele, então, me presenteou com um disquete de computador com todos os roteiros e a sinopse da minissérie “Labirinto”, que ele havia escrito em 1998, para que eu começasse a estudar. E foi um grande aprendizado, pois naquela época não havia muito material de estudo de roteiro. Eu imprimi os capítulos e ia acompanhando o texto com o que via na tela. Assim, aprendi as nomenclaturas, os termos técnicos, como se escrevia uma cena e como ela ia ao ar… Costumo dizer que o Gilberto foi o meu primeiro “professor de roteiro”, além de ter sido um grande amigo. Pouco tempo depois, li o meu primeiro livro de roteiro, “Da Criação ao Roteiro”, do Doc Comparato, sem imaginar que, anos depois, eu também trabalharia com ele, que é um mestre também. Trabalhar com o Doc é muito divertido, ele é muito generoso, dá total liberdade ao colaborador para criar, ensina tudo o que sabe, além de ser um dos nossos maiores roteiristas.

A profissão de roteirista virou o sonho de muitas pessoas nos últimos anos e houve aumento na demanda por causa da obrigatoriedade da cota de produção nacional. Que conselho você daria para quem sonha em entrar neste mercado que ainda é muito fechado?

EN: Em primeiro lugar, que estude muito e se abasteça de referências na literatura, na música, no teatro, no cinema, nas artes em geral. Que saiba trabalhar em equipe, que seja flexível para entender que o seu roteiro poderá sofrer alterações e ajustes, que não ache que ser roteirista é ter uma vida de glamour, com fotos no Castelo de Caras. Não. É muita ralação, são noites em claro, baldes de café, pesquisas, leituras… Na época da biografia do Chacrinha, eu já cheguei a ficar acordado mais de 24 horas seguidas, no afã de cumprir prazos que estavam apertados, por atrasos dos outros, não meus, e foi uma loucura. Hoje, eu jamais faria isso. Eu me respeito mais.

Você tem revisto obras mais antigas? Tem acompanhado Todas as Flores no streaming?

EN : Eu costumo fazer um “Vale a Pena Ver de Novo” meu, particular, então, vejo uma novela por vez. Já revi “Brega e Chique”, “Roda de Fogo”, “O Salvador da Pátria”, “Tieta”, “Por Amor”, “A Favorita”, “Babilônia”, “Avenida Brasil” e outras. No momento, estou vendo “Roque Santeiro” pela primeira vez, pois em 1985 eu era muito pequeno. Nas reprises da Globo, eu não vi, e nem na do Viva. E estou adorando a novela. Lima Duarte é um gênio! Como é bom ver grandes atores em cena, como Paulo Gracindo, Eloísa Mafalda, Armando Bógus, Yoná Magalhães, Ary Fontoura, José Wilker e Lídia Brondi. Não vi “Todas as Flores” ainda. Estou esperando disponibilizarem a novela inteira e vejo numa leva só. Mas só ouço elogios.

Cena clássica da novela “Roque Santeiro” (TV Globo/1985) onde professor Adamastor virava lobisomem. “Eu não havia visto nenhuma das reprises e nem a primeira exibição e estou adorando a novela”, diz.

Como você avalia a produção de telenovelas no streaming?

EN: Sobre o mercado do streaming, eu acho ótimo, pois é mais espaço para o trabalho não só de roteiristas, mas de toda uma equipe que produz uma novela ou série – atores, diretores, figurinistas, camareiros, maquiadores, iluminadores, cenógrafos, editores, sonoplastas e etc. Porém, como roteirista, acho que esse mercado precisa ser regulado. O trabalho dos roteiristas, principalmente, é muito precarizado.

O roteirista destaca a importância do streaming para a abertura do mercado. Apesar de não ter visto “Todas as Flores” (TV Globo/ 2022) ainda diz que está esperando terminar a segunda leva de capítulos para vê-la na íntegra. “Só ouço elogios”.

No Brasil, o roteirista não recebe pelo desenvolvimento do projeto, as produtoras já compram o seu roteiro pronto. Mas o seu tempo investindo na escrita, na pesquisa de texto, de conteúdo, na pesquisa de campo, nas horas em frente ao computador, escrevendo e escrevendo, isso não é remunerado. Sem falar na intervenção que o seu projeto sofre. Podem mudar tudo, chamar outros para escreverem com você e até tirá-lo do projeto e deixarem outros escreverem aquilo que foi uma ideia sua. O Ministério da Cultura e o do Trabalho precisam rever isso urgentemente, debater com profissionais e sindicatos e garantir que aqui se tenha um modelo de trabalho mais digno e respeitoso. Nos Estados Unidos, por exemplo, os roteiristas têm muito mais direitos garantidos. Isso precisa ser instaurado aqui também. Mas o debate é muito mais amplo do que essas linhas. Porém, é urgente.

Além de Vale Tudo que te marcou e de Tieta, que outras novelas você gostou muito? Gostaria de ver alguma delas virar remake? Como você avalia os remakes já produzidos?

EN Ah, gostei de várias novelas! Posso citar (além de “Vale Tudo” e “Tieta”): “Mulheres de Areia”, “A Viagem”, “Pedra Sobre Pedra”, “O Salvador da Pátria”, “Verdades Secretas I”, “Avenida Brasil”, “Barriga de Aluguel”, “Força de Um Desejo”, “O Cravo e a Rosa”, “Direito de Amar”, “A Próxima Vítima”, “Rainha da Sucata”, “Lado a Lado”, “Roque Santeiro” e “Por Amor”. A lista é maior.

E, de minisséries, eu adorei “Anos Rebeldes”, que é a minha predileta, é uma obra-prima da TV, uma preciosidade. Tudo ali é perfeito, a começar pelo elenco e pelo texto primoroso do Gilberto Braga, a trilha sonora, a reconstituição de época… Mas gosto muito também de “Memorial de Maria Moura”, “Presença de Anita”, “O Primo Basílio”, “Anos Dourados” e “O Canto da Sereia”.

“Anos Rebeldes” (TV Globo/ 1992) é a sua minissérie preferida. ” É uma obra-prima da TV, uma preciosidade. Tudo ali é perfeito, a começar pelo elenco e pelo texto primoroso do Gilberto Braga, a trilha sonora, a reconstituição de época”.

Não vi todos os remakes feitos. Dos que vi, destaco “Mulheres de Areia”, “Anjo Mau” e “A Viagem” como os mais bem sucedidos. Recentemente, teve o de “Pantanal”, que não vi, mas a julgar pela crítica positiva e unânime, imagino que tenha sido um excelente remake.

Para falar a verdade, eu sou meio relutante com remakes de grandes clássicos, como “Vale Tudo”, “Tieta”, “Avenida Brasil” e “Roque Santeiro”, e de novelas que já são remakes e, por isso também, tornaram-se clássicas, como “Mulheres de Areia” e “A Viagem”. Quanto às outras, ok. Não mexam nos clássicos. Reprisem, mas não mexam! Rs.

Vou te propor um jogo criativo como roteirista. Se você tivesse que reescrever algum final de novela que ficou marcado na história da teledramaturgia criando um desfecho totalmente diferente do apresentado, qual novela seria e que desfecho seria esse com a sua marca?

EN: Que responsabilidade! Mas entrando na brincadeira, eu não mataria a Raquel, em “Mulheres de Areia”. Separada do Marcos e rica com o que ganhou na separação, eu faria a Raquel se apaixonar por um homem muito bonito, empresário, rico, que teria um irmão gêmeo golpista, sedutor e cafajeste, sem que ela soubesse. E esse gêmeo golpista se passaria pelo irmão rico e daria um golpe nela. Algo assim, rs.

Nassife aceitou o desafio de reescrever o final de uma novela clássica. A escolhida foi o remake de Mulheres de Areia (TV Globo/1993). Em sua versão, a personagem Raquel (Gloria Pires) não morreria e seria vítima de um irmão gêmeo golpista provando o seu próprio veneno

O merchandising social é uma realidade nas telenovelas, e em muitos casos, contribuiu para a discussão de temas tabus na sociedade. Se você tivesse que defender a inclusão de um tema social em uma novela, qual seria? Dos já apresentados, você destaca algum?

EN: São tantos os assuntos importantes que poderiam ser debatidos num produto cultural de grande alcance, como as telenovelas. Falaria mais de racismo (com autores negros na equipe escrevendo, óbvio), pois acho que o debate sobre esse tema deve ser constante. É um reparo histórico que deve ser feito continuamente, pois a nossa sociedade, infelizmente, ainda é muito racista. E isso inclui o mercado de trabalho, que precisa ser mais aberto aos roteiristas pretos e às mulheres.

Nesse rol de temas-tabus, eu também debateria a pedofilia, pouco explorada nas telenovelas. Lembro de ter visto esse tema ser discutido em “América”, mas sem tanto alarde. E é um assunto importante que, tratado com a profundidade e relevância, pode contribuir muito para denúncias de abuso e exploração sexual de menores, por exemplo.

Pedofilia é um dos temas que Nassife destacaria mais nas tramas. “É um assunto importante que, tratado com a profundidade e relevância, pode contribuir muito para denúncias de abuso e exploração sexual de menores, por exemplo”. A cena acima é da novela Travessia que tem abordado esse tema (TV Globo/2023)

Também é importante que se debata temas atuais, que conversem com a sociedade, como a disseminação de fake news e nos perigos que ela implica, inclusive o democrático. Infelizmente, já vi alguns temas importantes serem tratados com “humor”, ou de forma rasa e até desonesta, o que acaba sendo um desserviço ao debate, que poderia ser sério junto à sociedade. Acho que escreveria sobre gordofobia, um assunto que vivi na pele, e pouco tratado na nossa teledramaturgia.

E os destaques positivos de mershandising social?

EN: Já tivemos contribuições sociais importantes oriundas de várias novelas, como o transplante de órgãos em “De Corpo e Alma”, o sequestro de crianças em “Explode Coração”, a leucemia em “Laços de Família”, o alcoolismo em “Vale Tudo”, a barriga de aluguel e inseminação artificial em “Barriga de Aluguel”, o racismo em “Corpo a Corpo”, a possível clonagem humana em “O Clone”, a síndrome de Down em “Páginas da Vida”, a homossexualidade e aceitação da família em “A Próxima Vítima”, são só alguns exemplos, que fica difícil escolher um só.

Novela “Vale Tudo” (TV Globo/ 1988) teve importante contribuição na discussão do alcoolismo, dependência vivida pela personagem Heleninha (Renata Sorrah). Nassife destaca a importância do mershandising social

Qual o seu casal de protagonistas preferido em uma telenovela? Se tivesse que escrever para um casal protagonista quem seria o casal dos seus sonhos? Aliás, cite alguns atores que estariam na sua galeria de personagens principais em uma novela.

EN: O meu casal preferido em novelas é de antagonistas: Maria de Fátima e César (Vale Tudo).  A “mocinha” que eu mais gosto é a Solange Duprat (Lídia Brondi), de “Vale Tudo”. Mas falando de protagonistas, de fato, o meu casal favorito é Diná e Otávio Jordão, de “A Viagem”. Não seria um “casal dos sonhos”, mas gostaria de ver um par romântico formado por Gloria Pires e José Mayer. Eles nunca fizeram um.

César e Maria de Fátima, de “Vale Tudo” é o seu casal preferido em novelas “Eles são os antagonistas da trama”.

A lista de atores com quem eu trabalharia é vasta: Gloria Pires, Laura Cardoso, Fernanda Montenegro, Zezé Motta, Lima Duarte, Antônio Fagundes, Marcélia Cartaxo, Taís Araújo, Tony Ramos, Olívia Araújo, Rosane Gofman, Marieta Severo, Lázaro Ramos, Camila Pitanga, Dira Paes, Renata Sorrah, Wagner Moura, Juliana Alves, Nicolas Prattes, Thiago Fragoso, Betty Faria, Patrícia Pillar, Marjorie Estiano, Isabel Fillardis, Bruno Gagliasso, Dandara Mariana, Luís Miranda, Vilma Melo, Carla Ribas, Sônia Braga, Dani Ornellas e tantos outros. Fora os que atuam mais no teatro, e são maravilhosos atores, mas não tão conhecidos do grande público, como o Leonardo Netto, o Marcelo Dias, o Bruno Ganem, a Marina Tourinho e a Gláucia Rodrigues. Só não trabalharia com quem apoiou e apoia fascista e governo genocida, que destruiu o quanto pôde a nossa já combalida Cultura. Artista sem consciência de classe não é artista. É celebridade. E artista que flerta com o fascismo, então, não é nem celebridade. É escória humana.

O beijo gay não é mais um tabu nas telenovelas, mas ainda existe muito preconceito na sociedade e o Brasil, infelizmente, é líder mundial no assassinato da população LGBTQIA+. Babilônia foi rejeitada por trazer um casal gay na terceira idade. Hoje, você acredita que seria diferente? Algum dia crê que a sociedade brasileira aceitaria um casal gay no núcleo principal de uma trama ou não haja que seja necessário e basta ter representatividade?

EN: Não sei, sinceramente. Em 2014, tivemos uma torcida expressiva pelo final feliz entre o Félix e o seu ‘Carneirinho’, em “Amor à Vida”, e o tal beijo gay foi muito celebrado. No ano seguinte, o boicote à “Babilônia”, que teve um primeiro capítulo que foi um dos melhores que vi até hoje. Mas, em minha opinião, tem também a ver com o crescimento de um movimento conservador, de extrema-direita, ligado às igrejas evangélicas. Não só isso, mas também isso.

Precisamos crer na evolução da sociedade como um todo, né? Eu espero, sim, que o Brasil deixe de ser o recordista em assassinatos da população LGBTQIA+, que haja um letramento social sobre as pessoas trans e todo o respeito e direitos que elas devem ter.

E nesse debate, a telenovela também pode contribuir, dependendo de como vai abordar o assunto. Mas já houve algum avanço nesse sentido. Basta lembrarmos que nos anos 1980 e 1990, eram poucos os personagens gays retratados sem caricatura. Compreendo que, nos anos 1980, ainda havia a sombra da Censura Federal, e algumas novelas tiveram essa abordagem censurada, como fizeram com “Brilhante” e mesmo em “Vale Tudo”, já com a redemocratização, onde houve algumas cenas cortadas das personagens Cecília e Laís, o casal lésbico da trama.

O Félix, como citei acima, era do núcleo principal de “Amor à Vida”. E, de vilão, desumano, capaz de abandonar a sobrinha numa lixeira, redimiu-se pela dor; depois, pelo amor; e ganhou a torcida do público. Foi um personagem de grande sucesso e bem aceito, não resta dúvida.

Mais do que importante, é necessário que tenhamos personagens que representem a sociedade diversa que somos. E que eles tenham relevância na trama, no núcleo principal mesmo, onde esses assuntos ganham mais estofo para serem levantados e discutidos. Representatividade também é reparo histórico.

Beijo gay de “Amor à vida” (TV Globo/ 2013) foi um importante passo dado na teledramaturgia . “Precisamos crer na evolução da sociedade como um todo”.

No mesmo viés da pergunta anterior, como você vê a evolução da participação negra na TV? As três novelas da Globo terão protagonistas negros este ano. Acredita que isso contribuirá para a diminuição do racismo?

EN :Acho pouco, mas é um bom começo. Pouco porque, se pararmos para pensar, não faz muito tempo, a participação do negro ainda se resumia a personagens de escravos, empregados, capangas e afins, esses clichês a que eles sempre foram submetidos durante tanto tempo e que reforçavam a construção dessa ideia do negro humilde, sem escolaridade e subalterno, dependente da “caridade” de um “branco bondoso”. Desses tempos remotos, só me lembro agora de Janete Clair, Gilberto Braga e Sílvio de Abreu como os únicos autores que ‘subverteram o sistema’ e criaram personagens negros de classe média e classe média alta. Janete em “Pecado Capital”, Gilberto em “Corpo a Corpo” e Sílvio em “A Próxima Vítima”.

Novela “Corpo a Corpo” (TV Globo 1984) foi um marco na história da teledramaturgia ao apresentar família negra de classe média. “Na época, o autor Gilberto Braga subverteu o sistema”.

Não vai “diminuir o racismo”, por uma série de razões que não cabem aqui, por serem muitas. Mas vai dar mais visibilidade a atores negros, mais oportunidades de trabalho a esses profissionais, com personagens diversos, naturalizando para a sociedade que pessoas pretas podem e devem ocupar os mesmos espaços sociais, que podem e devem ser retratados como um advogado, um médico, um engenheiro, personagens historicamente designados apenas a atores brancos

E qual seria o caminho para reverter isso? Você vê avanços na teledramaturgia?

EN: Acima de tudo, é importante que se dê espaço aos profissionais pretos falarem, reivindicarem suas demandas. São eles que precisam ser mais ouvidos do que nós, brancos. São eles os excluídos, são eles que sofrem o racismo, então, são eles que têm que falar, exigir seus direitos, e ocuparem mesmo todos os espaços que lhes são de direito. E a nós, brancos, que não temos lugar de fala no racismo, nos cabe sermos cúmplices na luta deles, nos cabe a luta antirracista, nos cabe lutarmos contra as injustiças que essas pessoas sofrem. Mas, repito: eles precisam falar e, sobretudo, serem ouvidos e atendidos.

Mas estamos evoluindo. A série “Encantado’s”, por exemplo, é um grande avanço. Escrita por duas roteiristas pretas: a Thaís Pontes e a Renata Andrade, protagonizada por atores pretos, como Luís Miranda e Vilma Melo, dirigida por pessoas pretas, que retrata uma família de classe média, dona de um supermercado no subúrbio, com todos os dilemas de qualquer família branca. Foi um grande acerto, fora que a série é uma delícia de assistir. O texto é muito bom e o elenco muito bem escalado.

Para Nassife, série Encantado´s, do Globoplay é um grande avanço na teledramaturgia nacional no combate ao racismo. “Retrata uma família de classe média, dona de um supermercado no subúrbio, com todos os dilemas de qualquer família branca”.

 Você gosta do cinema nacional? Que filmes você destacaria? Por que você crê que o Brasil está há anos sem concorrer a um Oscar enquanto Argentina e até mesmo países que não tinham tradição artística, como a Coreia do Sul têm se destacado?

EN: Eu adoro o cinema brasileiro, temos produções memoráveis. Gosto de muitos filmes, mas destaco “Central do Brasil”, “Estômago”, “Cidade de Deus”, “O Beijo no Asfalto” (de 1981), “Assalto ao Banco Central”, “O Quatrilho”, “Aquarius”, “Que Horas Ela Volta?”, “Tatuagem”, “Domésticas”, “Gonzaga – De Pai Para Filho”, “O Auto da Compadecida”, “A Hora da Estrela”, “Medida Provisória”, são tantos…

Não considero o Oscar como parâmetro de qualidade para o nosso cinema. É uma premiação importante, óbvio, mas não costumo usá-la como termômetro de nada. O que o nosso cinema precisa é de mais fomento, de mais incentivo, de uma reconstrução rápida da Ancine e da pasta da Cultura, de maneira geral. Mas, reitero que o debate também é mais amplo e setores do audiovisual devem ter suas demandas ouvidas e, dentro do possível, atendidas.

Trailler do filme nacional “O Quatrilho”, do diretor Fábio Barreto é um dos seus destaques no cinema brasileiro. “Nosso cinema precisa é de mais fomento, de mais incentivo, de uma reconstrução rápida da Ancine e da pasta da Cultura, de maneira geral”

Qual a sua cena de telenovela preferida? (sei que é difícil escolher uma, mas sempre há alguma) Conte porque essa cena foi importante para você.  

EN – Eu tenho tantas cenas preferidas, que, realmente, fica complicado escolher uma só e correr o risco de ser – já sendo – injusto com as outras. Mas se é para escolher uma só, eu cito a cena do reencontro da Diná com a Dona Maroca, no último capítulo de “A Viagem”. Talvez por eu, assim como a Diná, ter uma ligação tão forte com a minha mãe, que só o espiritual explica. Toda vez que vejo essa cena, eu choro. E choro muito.

Cena icônica da novela “A Viagem” (TV Globo/1994), e preferida na galeria de cenas do escritor Eduardo Nassife (Nota: Este vídeo pertence à Rede Globo de Televisão, que é detentora dos direitos de exibição).

Jornalista, roteirista, escritor e ator brasileiro com mais de 20 anos de experiência em comunicação.Vivo atualmente em Barcelona onde trabalho como correspondente internacional, mas já morei em outros países, como Portugal, Irlanda, EUA e Itália onde sempre estive envolvido com projetos na área de comunicação- minha grande paixão-.Como roteirista, destaco a coautoria na sinopse e no 1 capítulo da novela "O Sétimo Guardião" (TV Globo/2019), o documentário "Quem somos nós?", sobre exclusão social, e o curta-metragem "As cartas de Sofia".Como repórter, trabalhei em grandes grupos de comunicação no Brasil, como RBS, RAC e RIC. Ganhei o prêmio Yara de Comunicação (categoria impresso) em 2013 com uma reportagem sobre as diferentes famílias e histórias de vida às margens do rio Piracicaba (SP). Fui finalista do prêmio Unimed de Jornalismo/SC com uma reportagem sobre gravidez precoce.

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