Diário de um imigrante – Cap 7

No episódio anterior da série “Diário de um imigrante”, no dia 11 de setembro de 2001 eu estava trabalhando em Sintra, Portugal, quando soube dos atentados terroristas nos EUA. Era uma terça feira normal de trabalho no restaurante e eu havia saído para o meu intervalo até o turno da noite.
Seria mais uma tarde monótona e exaustiva, como todas as outras, pois ficar quatro horas sentado em uma praça era muito esgotador, mas não tinha como ficar indo e voltando para casa todos os dias. Como o salário era baixo não ia compensar o gasto com passagens. Mas, como disse antes, seria uma tarde como as outras se… Se o mundo não tivesse parado diante dos televisores naquele dia para assistir às cenas chocantes e assustadoras dos atentados.
Era 16 horas em ponto quando saí do restaurante e deixei, como sempre, Beto dormindo no salão. Confesso que sentia um pouco de inveja dessa regalia que ele tinha de poder descansar ali mesmo no restaurante. Eu já estava cansado de andar pelo centro de Sintra. Creio que as ruas e calçadas também já estavam cansadas da minha cara. Eu até tentava fazer novos caminhos, mas sempre eles me levavam ao mesmo ponto: a praça.
Não tinha como fugir daquela realidade. Era o emprego que eu tinha e por mais que eu odiasse trabalhar como garçom – creio que muito mais por causa do horário do que pela rotina- tinha que agradecer a Deus por ter um trabalho. Ao menos eu não estava gastando as economias que havia levado. Minha ideia caso permanecesse em Portugal seria mais para frente buscar trabalho em Lisboa.
Como bom teimoso que sou, eu não tinha tirado ainda a ideia de ser recebido na redação do “Diário de Notícias” ou em uma emissora de TV, pois sabia que a produção de novelas em Portugal estava em pleno aquecimento. Por muito tempo, os portugueses importaram as nossas tramas e não produziam muito conteúdo. No entanto, nos últimos anos, eles vinham fazendo investimentos fortes no setor de teledramaturgia, incluindo a contratação de profissionais brasileiros.
Mas para dar esse passo maior eu precisava estar preparado. Não cometeria o mesmo erro de ir à porta de uma emissora caminhando, todo suado e com os currículos em mão como havia feito na minha ida ao Diário de Notícias. A mim, não restava a menor dúvida que assim que eu virei as costas os recepcionistas do jornal atiraram meu currículo no lixo. Era o preço que eu pagava por ter feito uma ação sem estratégia.
Fazia muito calor naquela tarde de setembro e há muitos dias não chovia em Portugal. Eu que estava acostumado às tradicionais tempestades de verão do Brasil estranhava o fato de que em Portugal apesar das altas temperaturas quase não chovia- pelo menos desde o dia que eu havia chegado ao país não havia chovido um único dia. Eu caminhava normalmente pelas ruas sem nem imaginar o que estava acontecendo nos EUA.

Naquele momento, o mundo literalmente estava parado vendo as imagens dos atentados pela TV. Ao passar por um bar que eu costumava frequentar e onde sempre comia um doce chamado “travesseiro”, eu notei uma movimentação estranha porque os comércios, geralmente, estavam fechados para o descanso, mas, naquela tarde, os de rua que tinham TV estavam com as portas abertas. Logo pensei que seria por causa de algum jogo de futebol- os portugueses, assim como os brasileiros, também amavam futebol.
Por curiosidade, decidi entrar e descobrir que jogo tão importante era aquele para mobilizar tantas pessoas numa tarde de terça-feira. Ao me aproximar do bar notei semblantes assustados. Uns tinham cara de medo, outros estavam quase chorando. Ali percebi que algo muito forte havia acontecido. Me aproximei de uma TV e ela repetia incessantemente as imagens do choque dos aviões contra as torres gêmeas. Fazia muito barulho no bar. Muitas pessoas falando juntas e eu não conseguia ouvir os apresentadores e repórteres. Portugueses ao meu lado comentavam que era o início de uma nova guerra mundial. Outros diziam que era o fim do mundo. Alguns mais revoltados falavam em vingança.
Preocupado me aproximei de um casal de portugueses de meia idade que comia na barra do bar e perguntei o que tinha acontecido. Um deles, meio ríspido, me apontou a TV: “O senhor não está vendo? (é normal eles chamarem até os mais novos de senhor. É algo cultural dos portugueses e não tem a ver com a idade). “Estão acabando com os EUA. Tão matando todo mundo lá”. Vendo a rispidez como seu marido havia me respondido, sua esposa tratou de ser mais simpática. “Estão dizendo que foi um atentado terrorista, meu filho, mas ninguém ainda sabe de nada certo”.

Uma outra portuguesa que estava próxima deles levantou-se irritada da mesa e gritou alto que aquilo era o fim do mundo e que ela ia para casa ficar ao lado da sua família. Ela saiu em disparada pela porta atropelando um grupo de turistas que se aproximava e fez cara feia para sua intempestividade. Na verdade, todos estavam muito impactados e perplexos. Nenhuma hipótese podia ser descartada.
Estar fora de casa naquele momento não era nada confortável. Foi a primeira vez que me senti muito sozinho e com medo, mas o que fazer? Não havia outra saída a não ser rezar pelo mundo. No meu íntimo, meu maior medo era de que aquela senhora portuguesa pudesse estar certa. Podia ser o prenúncio do fim do mundo? Eu morreria sem ver minha família?
Cresci ouvindo essas previsões da minha avó materna Iracema. Muito religiosa e temente a Deus, ela dizia que quando coisas grandiosas feitas pelo homem contra o homem começassem a acontecer era porque o final do mundo se aproximava e que Deus voltaria e escolheria quem seria levado para o céu e quem ficaria no inferno. Por isso, ela dizia que era muito importante ser uma boa pessoa nesta vida porque todas nossas ações estavam sendo observadas e tudo isso seria posto à prova no dia do juízo final.
Será que minha avó estava certa? A grande verdade é que ninguém tinha essas respostas. A única certeza e que me feria profundamente a alma era que um dia todos nós íamos morrer e a morte era individual. Só que naquele caso dos EUA as pessoas não tinham tido mortes separadas. Todas haviam morrido juntas. Cada uma delas tinha tido a vida interrompida por uma trágica coincidência de acidentes ou por maldade do homem.
Horas depois dos primeiros atentados- foram quatro no total- o governo norte-americano já não falava mais em acidente. Eles tinham certeza que todas as ações haviam sido orquestradas por um dos maiores inimigos dos EUA: o líder muçulmano Osama bin Laden. E a história veio provar que eles estavam certos. Mensagens interceptadas pela inteligência norte-americana encontraram declarações de Bin Laden de que eles atacariam os EUA.
Um comentário recorrente no bar era que se a principal economia do mundo e a que tinha o maior poderio ofensivo havia sido brutalmente atacada, o que seria dos outros países caso acontecesse uma guerra? Como ficaria Portugal? E o Brasil? O fato é que desde o 11 de setembro de 2001 nenhum outro país pôde respirar mais aliviado.

Porém, em 2004, ironicamente também num dia 11, mas de março, após os atentados nos EUA, a Espanha também foi alvo dos terroristas num ataque aos trens em Madrid com 193 mortos e 2057 feridos.

Eu nunca imaginei que pudesse presenciar um atentado “in loco”. Anos depois dos atentados em Nova Iorque, em 2017, eu vivia em Barcelona, na Espanha, quando houve os atentados (contarei sobre esse episódio e minha cobertura como jornalista quando chegar no capítulo da Espanha).
Essa fragilidade mundial que ficou tão exposta no 11 de setembro e que viria se confirmar nos outros anos com novos atentados em outros países me deixava também pensativo e me fazia questionar o fato de eu estar fora de casa, pois no final das contas, minha família era o bem mais precioso que tinha, e agora eu tinha o grande amor da minha vida de volta, e a oportunidade de ter, finalmente, o meu tão sonhado filho.
Sempre quis ter um menino e há muitos anos havia decidido o nome: Pedro! Não me perguntem a razão, mas sempre fui apaixonado por esse nome tanto que ele se transformou no nome de todos os meus protagonistas em minhas histórias como roteirista. E justo agora que eu tinha oportunidade de viver minha história de amor eu estava afastado da Déa e de minha família.
Mas voltando ao dia 11 de setembro de 2001, não havia clima para escrever cartas ou ficar na praça fazendo hora. Decidi, então, interromper meu descanso e voltar ao restaurante. Quando cheguei achei estranho porque o carro dos patrões estava ali e eles só retornavam perto da hora de abrir para o turno noturno. Bati na porta e Beto veio abri-la.
Naquela altura todos já estavam sabendo do acontecido e meus patrões avisaram os funcionários que não teríamos turno noturno. Era uma forma de homenagem às vítimas daquele triste atentado, e outro fator que também os motivou a deixá-lo fechado é porque eles pressentiam que o movimento naquela noite seria muito baixo. Tanto os turistas quanto os próprios portugueses já começavam a telefonar cancelando as reservas.
Por mais que os atentados tivessem acontecido nos EUA, a insegurança estava por todos os lados. Ninguém podia afirmar que se sentia totalmente seguro. Os próximos dias seriam determinantes para um retorno gradativo ou não dos clientes. Meus patrões informaram que, até segunda ordem, o turno do outro dia estaria mantido e que iam acompanhar de perto as notícias nos EUA e a movimentação dos turistas em Portugal para decidir se mudariam o cronograma do restaurante.
Era 18h30 e eu já estava no trem regressando para casa. Quando cheguei encontrei Paula, vó e Angelo praticamente estáticos diante da TV. A insegurança e impotência de todos nós foi a tônica daquela noite. Acompanhamos todos os noticiários e tudo aquilo nos deixava muito abalados. Nem mesmo os roteiristas mais habilidosos do mundo podiam ter criado algo que impactasse tantas pessoas num efeito bola de neve.
O sentimento de Angelo também era o mesmo que o meu: medo por nossas famílias. Naqueles momentos de extrema fragilidade era quando mais sentíamos saudade de quem amávamos. Tanto eu quanto ele saímos por volta da meia noite em Portugal para ligar para nossas famílias do telefone público. Eu falei com minha mãe, com meu pai, também liguei para a minha tia Maria e vó Olga e deixei para falar com Deia por último. O meu estoque de fichas se esgotou rapidamente, mas eu passei o número do telefone e eles me ligaram em seguida.
Com Deia fiquei quase dez minutos seguidos ao telefone. Falar com ela me reconfortava, me fazia sonhar, mas principalmente me deixava ter esperança. Reencontrá-la justo naquela fase de minha vida era como receber um remédio potente que tinha o efeito restaurador. Principalmente naquela noite ela me disse que caso eu voltasse para o Brasil que ela estaria incondicionalmente comigo, mas que iria respeitar minha decisão de ficar por mais um tempo.
Minha família estava muito mais apreensiva e meu pai e minha tia diziam que sempre haviam sido contra minha ida para outro país e que agora mais do que nunca eu deveria estar perto deles porque todos temiam um agravamento da situação e até mesmo a explosão de uma guerra mundial.
Depois de falar com cada um deles voltei para minha casa e me custou muito dormir naquela noite. As palavras de cada um deles havia batido forte e pela primeira vez me senti muito egoísta ao analisar o meu problema diante da dor de milhares e milhares de pessoas em todo mundo que choravam a dor por terem perdido amigos e familiares.
Não seria a hora de eu dar um basta naquela situação? Talvez aquele fosse o momento para eu provar a mim mesmo que eu era mais forte que um trauma de adolescência e encarar minha nova realidade. Se eu havia sido forte para atravessar um oceano, para deixar minha família, meus amigos e minha namorada (já a chamava assim), eu teria que ser forte para encarar meus traumas e voltar.
Só que ao mesmo tempo que eu queria vestir essa carapuça de super homem eu me sentia totalmente frágil. Não teria coragem de enfrentá-los de frente. Foram anos e anos me escondendo, me anulando, fugindo de situações, com medo das pessoas tocarem na minha cabeça e revelarem minha “identidade” ao mundo.
Como eu poderia com pouco mais de um mês jogar tudo isso para os ares e assumir uma nova postura? Aquele homem forte, guerreiro, capaz de lutar se tornava presa fácil quando o tema era minha fisionomia. E eu me culpava por pensar daquela forma.
Constantemente vinha a imagem da minha mãe à cabeça. Ela sim tinha todos os motivos do mundo para ser uma mulher revoltada, amargurada, triste e infeliz depois do acidente que a deixou deficiente e a fez perder os movimentos dos pés. Mas ao contrário, ela era uma fortaleza.
Raramente a víamos chorando. Ela repetia constantemente que era grata a Deus por ter sobrevivido e que sonhava sim em voltar a andar um dia, mas que agradecia porque amava a vida e não queria partir daquele mundo. Minha mãe foi a pessoa mais forte e aguerrida que conheci em toda minha vida. Nenhum dos tombos que levou da vida, e foram muitos seguidos pós- acidente, a fez desistir de lutar e acreditar.
E foi graças a um telefonema dela cinco dias depois do dia 11 de setembro- eu falava com todos no Brasil aos domingos- que eu tomei uma decisão radical e que mudou minha trajetória. Depois de receber aquela ligação eu respirei fundo, fechei os olhos e disse para mim mesmo: “Amanhã é outro dia”.
VEM AÍ:
No próximo capítulo de “Diário de um imigrante”, os primeiros dias pós-atentados nos EUA e a ligação da minha mãe que me fez tomar uma decisão radical.

