“Ser roteirista é criar histórias que emocionem, divirtam e transformem as pessoas”, diz Ingrid Zavarezzi que voltará à TV aberta no segundo semestre com série sobre violência doméstica

Na infância, ao ganhar de presente do avô o livro “Os Meninos da Rua Paulo”, escrito pelo jornalista e escritor húngaro Ferenc Molnár, a pequena Ingrid Zavarezzi literalmente devorou a história. Naquela época, o gosto pela literatura já fazia parte de sua rotina. Criada em casas cercadas de bibliotecas e de livros por todos os lados, aquele universo mágico de princesas e de aventuras e de grandes clássicos a fazia sonhar, mas ela confessa que a ao terminar a leitura de “Os meninos..”, que começou a arrancar as páginas finais do livro porque não se conformava com a morte do protagonista. Decidiu, então, reescrever a história na máquina de escrever- também dada pelo avô. Recortou as folhas no tamanho do livro e as colou com fita durex. Quando mostrou o resultado ao avô, ela conta que ele ficou furioso dizendo que não se podia adulterar a obra de um autor e tampouco reescrever a história de outra pessoa. Ingrid tentou ainda argumentar dizendo que o final original era muito triste, mas seu avô lhe aconselhou que se ela quisesse outros destinos para as personagens que escrevesse suas próprias histórias. Nascia assim uma nova escritora para o mundo.
E de uma leitora assídua de livros infantis, Ingrid foi cada vez mais se apaixonando por aquele mundo. Com o tempo, conquistou espaço em diferentes áreas, principalmente como roteirista e autora de TV. No segundo semestre deste ano, ela voltará ao horário nobre com a série “Estranho Amor”, produção da Record TV, escrita em parceria com os autores Vitor de Oliveira e Inácio Ramos, e que discutirá um tema importante: a violência doméstica. “O Brasil é um dos países com a maior taxa de feminicídio do mundo. Uma mulher é morta a cada seis horas. Outra é estuprada a cada dez minutos. A maioria delas não denuncia, ou só denuncia quando já é tarde demais. Não é só violência física. Tem a moral, do homem que difama, que calunia, que manda foto; tem a violência patrimonial, daquele que toma conta do dinheiro da mulher, se acha dono das coisas dela; tem a sexual, daquele que obriga a mulher a transar contra a vontade dela, e a psicológica. Quem sofre violência nunca mais esquece. A pior cicatriz não é a do corpo. É a que fica na alma”, diz Ingrid. Nesta entrevista exclusiva ao blog “Desejo de viver”, a carioca Ingrid Zavarezzi fala deste novo projeto na TV e também de trabalhos anteriores, como as duas temporadas diferentes da novela “Malhação”, a colaboração na novela “Alta Estação”, e relembra como foi sua entrada na TV com o programa “Você Decide”, em 1990. “Ser roteirista é ter a honra e o prazer de criar histórias que emocionam, divertem, informam e transformam as pessoas. É usar a imaginação e a sensibilidade para dar voz aos personagens, aos conflitos, aos sonhos e aos sentimentos que habitam o universo que quisermos inventar. É fazer da arte uma forma de entretenimento, de expressão, de resistência e de esperança”.
Antes de dedicar-se à escrita você fez faculdade de Medicina. Como foi isso?
INGRID: Depois que eu cresci fui pra faculdade de Medicina porque “escrever” não era considerado uma profissão. E na primeira aula, no anatômico, tinha ali um pé de uma pessoa na mesa. Um pé sem perna, sem o outro pé, sem corpo, um pé sozinho ali perdido. Eu cheguei em casa e escrevi a história daquele pé, da criança que nasceu com aquele pé, que cresceu, caminhou com aquele pé e o que aconteceu com aquele pé para ele terminar ali, sozinho, numa mesa de anatômico. Naquele momento, eu percebi que a medicina não era pra mim. Dois anos depois, eu larguei a faculdade e fui para a Escola de Belas Artes. Tentei Desenho industrial, Comunicação Visual e, finalmente, acabei na Publicidade que era parecido com escrever e dava dinheiro. Já trabalhando em minha própria produtora eu comecei a escrever institucionais e vídeos de treinamento para grandes empresas, como a Petrobrás, a Fiat, Lojas Americanas. Eu, instintivamente, criava dramaturgias para esses vídeos. Eles tinham todo um storytelling, participações de atores, etc. E um dos diretores desses institucionais foi o Herval Rossano. Ele gostou do meu roteiro e me convidou pra escrever um “Você Decide”- núcleo que ele comandava na época na Globo. Isso era início dos anos 1990. Foi assim que eu entrei na Globo, onde eu fiquei, entre idas e vindas, até 2019.

Fiz muitos institucionais pra emissora. O “Histórias da Noite” – uma dramaturgia dentro do “Altas Horas”, do Serginho Groisman; depois fui pra Record, colaborar com a Margareth Boury em “Alta Estação”. Voltei pra Globo e fiz o “Beijo Me Liga” no Multishow, que era uma série pioneira na questão da transmídia, a primeira série brasileira em que os personagens tinham redes sociais. Depois, colaborei com o Ricardo Hoffsteter na “Malhação ID” e fui autora da “Malhação Conectados”. Fiz o telefilme “Tal Filho Tal Pai” com Fábio Júnior e Fiuk, que foi um boom de audiência na época.
Malhação serviu como celeiro para o surgimento de muitos atores que hoje brilham em grandes papeis e alguns como protagonistas. Você acredita que foi um erro tirá-la do ar ou a fórmula estava esgotada?
INGRID: Não penso nessas mudanças como erros ou acertos. Uma TV aberta precisa de patrocinadores e investimentos para fazer girar uma máquina que emprega milhares de pessoas. São milhares de famílias que direta e indiretamente estão ligadas a ela. Tudo evolui e se transforma. O termômetro sobe e desce. Hoje, temos as redes sociais, influenciadores com zilhões de seguidores. Tudo é uma questão de experimentar e descobrir os melhores caminhos para cada produto da grade.
Para o segundo semestre está previsto o lançamento de uma nova série sua que discutirá um tema importante: a violência doméstica. Pelo que li, os casos foram baseados em histórias reais. Como vocês chegaram até estas histórias? Como foi feita essa pesquisa? Vocês tiveram contato com estas mulheres?
INGRID: “Estranho Amor” faz um alerta muito importante à sociedade sobre a questão da violência contra a mulher. As estatísticas assustadoras da violência doméstica em nosso país revelam a imensa necessidade de buscar uma prevenção e dar voz às mulheres que sofrem silenciosamente, encarceradas em relações abusivas das quais não conseguem sair. A protagonista Vânia é uma policial que assume seu primeiro posto como delegada em uma delegacia de mulheres na zona Oeste do Rio de Janeiro e dá tudo de si para ajudar as vítimas que chegam até ela, tentando assim resolver seus conflitos internos causados por uma traumática violência que sofreu no passado, enquanto busca o comprometimento de uma equipe indolente e burocrática. Nós fizemos muitas pesquisas em diversas DEAMs (Delegacia de Mulheres), conversamos com delegadas, acompanhamos depoimentos de diversos casos. Todos os dias os noticiários mostram crimes sem fim contra as mulheres, cada um mais escabroso que o outro, uma maldade, uma ferocidade sem limites.
Na TV aberta brasileira, temos teledramaturgia só em três canais: Globo, SBT e Record. A Globo ainda investe em temas diversificados, mas o SBT há anos segue uma linha infantil e a Record evangélica. Você acredita que essa segmentação acaba prejudicando o surgimento de outras linhas de trabalho? Como vê o retorno de muitos remakes para a TV?
INGRID: Tudo é uma questão de experimentar e descobrir o que é melhor para a empresa e seus colaboradores. Antes de dedicar a maior fatia da sua grade à dramaturgia evangélica, a Record teve vários produtos “não evangélicos”. O SBT supriu a demanda dos infantis que sumiram dos outros canais e por aí vai. Os remakes seguem uma onda internacional de releituras, de revivals de muito sucesso. Olha aí o Cobra Kai, os prequels da Marvel, o Maverick trazendo de volta o “Top Gun”, a música e o teatro trazendo e reinventando grandes sucessos. Com as novelas não é diferente. Amei o remake de “Pantanal”. Foi lindo e resgatou uma grande audiência, provando que uma boa história é sempre uma boa história. Creio que o avanço da tecnologia na produção audiovisual nos permite hoje fazer produtos com uma qualidade técnica infinitamente superior, que também ajuda nessas releituras. Olha o Duna, que espetáculo. Eu adoraria ver remakes de novelas e séries como “Terra Nostra”, “Um Anjo Caiu do Céu”, “Hilda Furacão”, “Coração de Estudante”, entre outras.
Você escreveu várias séries como “A Moira” e “Ameaça Invisível”. Conte um pouco destes projetos.
INGRID: “Ameaça Invisível” fala de uma médica infectologista que desenvolve um medicamento para combater um novo vírus que se espalha pelo mundo. Ela se vê ameaçada por uma poderosa indústria farmacêutica que quer se apossar da sua fórmula e, com a ajuda de um grupo de jornalistas, reúne secretamente pessoas infectadas para testar a eficácia da substância e lançá-la no mercado de forma gratuita e livre de patentes. Gravamos de forma remota no meio da pandemia, em vários países, e ainda estamos fechando algumas cenas. Deve estrear na Record em 2024.
“A Moira” fala sobre esse arquétipo que “tece a vida dos seres humanos” e na trama se divide entre quatro mulheres, cada uma delas responsável por um tipo de aprendizado de acordo com os defeitos da pessoa a quem estão dominando no momento. Na série, elas entram na vida de Tony Mantovani, um gênio musical decadente. Tony é um compositor especializado em trilhas para TV, cinema e teatro, que fez muito sucesso nos anos 1970, mas depois que se separou, foi se fechando cada vez mais em si mesmo e afundou num bloqueio criativo.
Nos anos 1980, quando nossa história começa, ele luta para conseguir compor a música-tema para a próxima novela das oito, que pode ser sua última chance de dar a volta por cima. Pressionado pelo diretor artístico da emissora, Tony entra em crise e começa a beber cada vez mais, descontando suas frustrações em todos ao redor, especialmente na mãe e na vizinha, secretamente apaixonada por ele e que, por isso, é a única que ainda atura sua grosseria, para desespero da filha adolescente, que acha que a mãe merece coisa melhor.
Um dia, na praia, Tony encontra uma mulher misteriosa, que dá a ele o cartão de um bar, o qual acaba se revelando um lugar mágico, tocado por quatro atendentes que talvez sejam uma só. Quase como uma mistura de anjo da guarda e fada madrinha, as atendentes ajudam Tony a despertar de novo para o mundo e para a vida, tudo num clima atemporal de fábula, magia e encantamento. Aos poucos, à medida em que vai se tornando uma pessoa melhor, Tony encontra a criatividade perdida e redescobre o amor nos braços da vizinha. A série foi produzida em 5 episódios para a produtora H20.
Você acredita que a telenovela tende com o tempo terminar e ceder espaço às séries? Como segurar a atenção do público de TV aberta com tantas opções no streaming?
Não acredito que a novela tende a terminar. O público adora novelas, em especial o brasileiro, com grandes produções de sucesso. A internet universaliza tendências de consumo e a produção audiovisual faz parte disso. Tudo evolui e se adapta muito rápido, e pra tudo tem nicho de audiência. Não acredito que quando um produto passa num canal aberto a exposição é instantânea. A maioria dos jovens dos 25 anos para menos nunca assistiu uma novela, não vê TV aberta. Esse público só tende a crescer e está antenado com o hype das trends. No caso da dramaturgia, sempre haverá público para histórias bem contadas.
Como você vê esse movimento do streaming investindo em telenovelas?
Acho maravilhoso! Depois dessa fase frenética que vivemos, há uma tendência mundial de wellness, saúde, detox de redes sociais, de busca do bem-estar, de reunir quem amamos pra ver coisas juntos, e passa por aí o investimento em produtos com mais episódios, histórias com bons ganchos para que depois do capítulo as pessoas fiquem naquela “e agora, o que será que vai acontecer?”
Você acredita que uma novela ou uma série, por exemplo, tem o poder de ajudar na luta por uma sociedade mais justa e igualitária?
INGRID: Sim, tem, principalmente num país como o nosso. Temos uma missão de dar voz a esses temas de forma transversal em nossos produtos, interagir com o público e promover informações úteis e práticas sobre temas relevantes. A minha novela, por exemplo, falou de prevenção do retinoblastoma, um câncer intraocular que afeta principalmente crianças, também falei do empreendedorismo jovem nas favelas. Foi a primeira Malhação a ter um núcleo de favela mostrando o trabalhador que vive e luta pelo bem e pela cultura da sua comunidade. Alguns temas que achei tremendamente relevantes na TV.
– “Todas as Flores” (2022), de João Emanuel Carneiro, abordou temas como o tráfico de pessoas, a violência contra a mulher, a cultura afro-brasileira e a inclusão social.
– “Nos Tempos do Imperador” (2021-2022), de Thereza Falcão e Alessandro Marson, abordou temas como a escravidão, o abolicionismo, o feminismo, a educação e a história do Brasil.
– “Amor de Mãe” (2019-2021), de Manuela Dias, abordou temas como a violência doméstica, o racismo, a adoção, a doação de órgãos e a pandemia de Covid-19.
Você também tem experiência no teatro. Como foi escrever a peça “Nunca desista dos seus sonhos”, que é uma adaptação do livro de Augusto Cury? Você escreveu outros trabalhos para o teatro?
INGRID: Adoro escrever para o Teatro. Gostaria de ter tempo para me dedicar mais. Meus trabalhos mais recentes foram “3 na Pista” sobre três amigos que ficam solteiros e “Cuidado, Seu Príncipe pode ser uma Cinderela”, adaptado do livro de Consuelo Dieguez e Ticiana Azevedo. Adaptar o livro do Dr. Augusto foi tremendamente desafiador, me senti muito honrada com o convite e curti demais o resultado, estamos lotando teatros em todo o Brasil. O Dr. Augusto tem uma enorme sensibilidade e eu, particularmente, me identifico demais com tudo o que ele preconiza. Agora acabei de adaptar outro livro dele, “O Futuro da Humanidade”, também para teatro, com previsão de estreia no segundo semestre.

Você também tem incursões como professora de workshops de dramaturgia. Como foi essa experiência? E o seu trabalho de mentoria individual de roteiro? Como é esse projeto?
INGRID: Sim, eu adoro compartilhar meu conhecimento. Faço disso uma filosofia de vida. O trabalho no audiovisual é sempre em equipe. É importante ajudar a formar novos roteiristas, assistentes de roteiro, pesquisadores, profissionais que entendam a realidade de um mercado que está em plena expansão. O audiovisual brasileiro é um dos mercados que mais crescem no país com o surgimento de novos canais, players e mídias em busca de conteúdo. É um setor que gerou aproximadamente R$ 28 bilhões em 2022, com uma previsão de crescimento de 5% ao ano.
Pra você ter uma ideia, o Brasil está entre os dez maiores do mundo em produção de filmes, séries, novelas e conteúdo para a internet. E como é que todo produto audiovisual nasce? No roteiro! Eu sempre digo que sem roteiro não adianta “um sonho na cabeça e uma câmera na mão”.
É fundamental aprender as técnicas para a escrita de roteiros profissionais, entender as demandas e processos. Em minhas mentorias eu trabalho todas as etapas, desde a ideia até o produto no ar. São aulas individuais, via Zoom, e eu tenho alunos de vários lugares do Brasil e do mundo. Jornalistas, atores, atrizes, professores, escritores, até músicos! Muitos deles já são meus colaboradores em diversos projetos e eu também colaboro em diversos projetos de ex-alunos que hoje estão no mercado.
PING PONG
Filme nacional e internacional: Vish, são muitos né? Difícil escolher um de cada, mas vamos lá… Um filme nacional que revi recentemente e me emocionou muito foi “Que Horas Ela Volta”. Um internacional que não canso de assistir e que me marcou particularmente é “Blade Runner”, é meu cult movie ever.
Novela: Estou amando “Todas as Flores”
Ator/ Atriz: Marcos Caruso e Andrea Horta
Personagem que gostaria de ter escrito: Carmy Berzatto, da série The Bear
Música: tudo da Bossa Nova
Cantor: seu Jorge
Cantora: Lizzo
Cidade: Oeiras, Portugal
Cena de novela inesquecível: a morte de Odete Roitman
Série nacional: Sintonia
Série Internacional: The Marvelous Miss Maisel



2 Comments
Fabio
gostaria de aprender a escrever roteiros…. estudo teatro na escola de teatro o tablado…..As histórias eu já tenho, só falta aprender a escrever agora…. gratidão.
André Luis Cia
Fabio, escrever é praticar… Ver muitos filmes, novelas, séries, estudar os roteiros. Se o seu dom vc colocará isso em prática!