“Transformei o preconceito e as minhas dores do passado em arte e fiz disso a minha filosofia de vida. Nunca me coloquei no papel de coitadinha e fui à luta para conquistar meu espaço como atriz e mulher negra “, diz Ana Miranda

Atriz Ana Miranda chegou a passar fome e a ficar sem casa, mas nunca desistiu do sonho de ser atriz

Anos atrás a pequena Ana se deslumbrava com as imagens que via na TV e com as vozes emitidas pelo rádio. Ainda criança, não entendia como aquelas pessoas podiam estar ali dentro e ainda falarem. Era tudo mágico e ela queria pertencer aquele mundo de fantasias e ilusão. Em sua cabeça e na ingenuidade de uma menina pura e sem maldades, ela imaginava que se abrisse cada um daqueles objetos poderia conectar-se com aquelas pessoas. E foi exatamente isso que ela fez e que lhe rendeu uma baita “surra” da mãe, mas nada a demoveu do sonho de ser atriz. O tempo passou, a menina cresceu e o destino lhe pregou outras surras ainda mais graves que lhe deixaram marcas na alma. Ana foi expulsa da pensão onde morava, passou fome, sofreu tentativas de violência sexual , dormiu na rodoviária do Tietê e no dia que havia pensado em cometer suicídio, “um anjo”, como ela se refere a ele, apareceu em seu caminho e lhe estendeu a mão. “Não tenho dúvidas que foi a mão de Deus que colocou aquele homem na rodoviária exatamente naquele momento, pois depois de falar com minha mãe por telefone eu estava pensando em me matar”, relembra emocionada. O relato forte, comovente e visceral da atriz Ana Miranda é a prova de que muitas vezes a vida nos dá golpes e rasteiras certeiras, mas que se existe fé e determinação nada pode nos impedir de alcançar nossos sonhos. Ela é testemunha real disso. Levou muitos tombos da vida, mas nada a deteve.

Ana não só desistiu de se matar, mas lutou para viver e venceu suas batalhas contra o ardiloso destino. Com muita determinação, ousadia e vontade de vencer, ela foi subindo degrau por degrau e, hoje, pode se dizer orgulhosa pela estrada conquistada. Mulher negra, forte, decidida e muito talentosa. Ana acumula inúmeros trabalhos na TV, dentre eles, novelas e séries, no cinema, e principalmente no teatro- sua grande e maior paixão. ” Eu amo teatro desde que me conheço por gente. Creio que essa paixão começou ainda no ventre da minha mãe”, diz. Recentemente, Ana se destacou na pele da governanta Ismênia, na novela “Mar do Sertão” (TV Globo).

Nesta entrevista especial ao blog “Desejo de viver”, Ana Miranda fala sobre o seu processo de superação no passado, da resistência da mãe que não a queria como atriz, da condição de mulher negra na sociedade, e também da luta contra o racismo. “Meu sonho é não ler mais manchetes dizendo que a TV está com protagonistas negras ou que o ministro é negro ou ainda que um negro conquistou posições de destaque na sociedade. Isso tem que ser algo natural e não deveria mais ser pauta. Por outro lado estamos tendo um progresso importante e que não pode parar”, justifica.

Como foi o seu despertar artístico? Você teve alguma influência da família?

Ana: Sou nascida em Belém do Pará, a caçula de seis irmãos (duas meninas e quatro meninos). Perdi meu pai quando tinha apenas dois anos de idade. Me recordo de ouvir minha mãe dizer algumas vezes que ela havia sido cantora no passado. Ela cantava na igreja batista, mas creio que acabou abrindo mão desse talento. Hoje diríamos que ela foi “cancelada” pela própria família, mas esse era um assunto velado em casa. Alguma vez ou outra ela deixava escapar essa fase de sua vida. Creio que minha veia artística venha daí. Desde muito pequena eu já dizia que queria ser artista mesmo sem entender muito sobre aquilo. Quando minha mãe saía de casa eu vestia suas roupas e usava um cabo de vassoura para contracenar comigo mesma. Na época, passava a novela “Final Feliz” e eu era apaixonada por aquele casal; Débora    (Natália do Valle) e Rodrigo (José Wilker). Eu interpretava as cenas deles. Falava com as fotos e pôsteres de artistas pregados na minha parede como se eles me escutassem e fossem me ajudar a virar atriz. Minha mãe chegava da rua e via tudo aquilo e achava que eu estava ficando louca. Ela queria me internar de verdade porque não achava normal meu comportamento (gargalhadas).

Novela “Final Feliz” foi uma das inspirações de Ana na infância. Ela recriava as cenas dos protagonistas.

Sua mãe, então, era contra o seu desejo de se tornar atriz?

Ana: Sim! Ela não aceitava de maneira nenhuma. Ela queria que eu fosse médica. Esse era o seu sonho e ela conseguiu me segurar até os 13 anos, mas logo depois eu comecei a sair escondida de casa para ir em ensaios de teatro. Gostava de ficar rodeando os teatros de Belém, de observar a movimentação dos grupos de teatro.  Uma colega acabou contando dessas minhas “escapadas” para minha mãe e ela me deu uma nova surra em frente ao teatro, mas no dia em que eu tive minha estreia nos palcos e vi aquele teatro lotado, cheio de pessoas me olhando e me aplaudindo, eu não tive dúvidas que era aquilo que queria fazer aquilo para o resto da minha vida. Na adolescência, fiz parte do Centro de Estudos e Defesa dos Negros do Pará (Cedenpa). Foi nessa época que conheci a atriz Zezé Motta e ele me fez entender e aceitar a minha identidade como mulher preta e atriz. Antes disso, tive aquela fase de não aceitação de minha imagem, de querer alisar o cabelo, afinar o nariz, e graças ao Cedenpa, consegui mudar esse pensamento. Ao fazer a peça “Face negra face”, eu já estava completamente decidida que seria uma atriz.

Você falou desse processo de aceitação de sua cor e isso teve ligação a algum tipo de racismo sofrido no passado?

Ana: A primeira vez que fui vítima de racismo eu tinha apenas nove anos. Era uma criança ainda sem nenhuma maldade. Eu já brincava de ser atriz e usava a sala de aula para fazer minhas encenações públicas meio que obrigando meus coleguinhas a contracenarem comigo. Em uma das vezes, minha professora viu e disse que eu era uma boa aluna em português, mas que não podia ser atriz por ser preta. Eu nunca esqueci aquela frase, mas não me fiz de vítima ou de coitadinha e fiquei calada. Eu não podia contar em minha casa sobre isso porque naquela época, você era repreendido na escola com palmadas na mão por qualquer transgressão e quando chegava em casa também era punido pelos pais.  Eu nunca quis assumir o “papel de coitadinha”. Depois de algum tempo fui para uma escola particular, mas engana-se quem pensa que por ser ensino pago não haveria racismo. Lá, minhas colegas me chamavam de preta suja, de macaca e de encardida, mas nada me fazia baixar a cabeça ou desistir do meu sonho. Quando ganhei meu primeiro prêmio de destaque como atriz recordei daquela professora e de como sua fala preconceituosa me ajudou a transformar meu sofrimento e minhas dores em arte. Hoje, quando me vejo na TV também me recordo das colegas que me humilharam, e que agora são obrigadas a me aplaudir porque eu não desisti de lutar. Suas ofensas não me impediram de sonhar, pelo contrário, elas me deram força para voar.

Atualmente, vemos um avanço, principalmente na TV e na publicidade com o protagonismo para os negros. Como você vê essa mudança de comportamento na teledramaturgia?

Ana: Já estava na hora disso acontecer e devemos essa conquista especialmente à quatro mulheres e atrizes guerreiras de nosso país:  Léa Garcia, Chica Xavier, Ruth de Souza e Zezé Mota. Elas foram um avanço para que conseguíssemos chegar até aqui. Graças a elas, muitas portas se abriram, mas confesso que gostaria que a pauta na sociedade não fosse mais o racismo. A Zezé, infelizmente, foi vítima disso quando muitas pessoas rejeitaram sua personagem na novela “Corpo a Corpo” porque ela era uma mulher negra se relacionando com um homem branco.

Atriz Zezé Motta fala sobre o racismo sofrido na época da novela “Corpo a Corpo”.

Como foi o seu processo de mudança para São Paulo e essa fase difícil de viver nas ruas por algumas semanas, de passar fome e de pensar em se suicidar?

Ana: Minha mãe não aceitava minha decisão de ser atriz. Ela era do tipo de pessoa que fazia exatamente o contrário de sua vontade. Em uma das surras que ela me deu disse que me mandaria para São Paulo na casa de uma amiga por um mês. Eu sabia que se aceitasse ela recuaria. Então, bati o pé que não iria e ela acabou me dando esse presente sem nem mesmo imaginar que esse era o meu passaporte para lutar pela carreira de atriz. Eu era muito novinha e São Paulo era tão grande! Era muito magrinha e um dos primeiros convites que recebi foi para fazer um filme pornô e eu não aceitei. A vida que eu achava que seria fácil se mostrou muito mais complicada do que eu imaginava. Tive que ir trabalhar numa fábrica de batom. Tempos depois, essa família que eu vivia saiu de São Paulo e fui viver na casa de uma gerente da fábrica. Minha mãe imaginava que eu havia desistido de ser atriz, mas esse sonho continuava ainda vivo dentro de mim. Só que nessa casa onde fui viver o pai da garota tentou abusar de mim. Eu briguei muito e saí de lá. Fui viver numa pensão, mas sem trabalho, o dinheiro acabou. Eles me expulsaram da pensão e fiquei sem ter onde morar.

E o que você fez nesse momento? Pensou em desistir?

Ana:  Tive a ideia de viver no Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo. Eu não podia dormir ali porque era proibido, mas dava pra dar umas cochiladas. Era um lugar muito movimentado, de fluxo contínuo de pessoas. Eu me alimentava do resto da comida das pessoas que achava nas lixeiras e durante o dia saía para buscar trabalho. Eu não tinha um centavo no bolso.  Nesse período, comecei a achar que minha mãe tinha razão. Aquela vida não estava sendo nada do que eu havia planejado. Sofri uma nova tentativa de abuso de uma pessoa que tinha prometido me levar para um lugar e dar comida. Consegui fugir e foi nesse dia que decidi que ia me matar, mas antes eu precisava despedir de minha mãe. Liguei de um telefone público e só conseguia chorar. Ela não entendeu muito bem porque eu não expliquei o que estava acontecendo e logo depois caiu a ligação. Eu estava muito fraca fisicamente. Eu não percebi que havia alguém me olhando. Era um rapaz. Ele se aproximou de mim. Viu meu desespero e me ofereceu ajuda. Disse que tinha quebrado o carro e que havia levado para arrumar. Ele me ofereceu comida e depois de comer muito e me sentir mais forte tive coragem de contar minha história e que eu estava pensando, inclusive, em me suicidar antes de sua chegada. Ele me disse que iria para Guarulhos e que gostaria de me levar para um lugar onde poderiam me ajudar. Fez uma ligação e em cinco minutos voltou dizendo que estava tudo certo. Ele tinha que buscar o carro, mas me deixou seu cartão do banco com dinheiro e disse que eu podia usar com comida e para tomar banho. Que outra pessoa desconhecida deixaria o cartão com muito dinheiro para uma estranha? Ali naquele momento eu sentia que era a mão de Deus na minha vida. Ele havia posto um anjo na minha vida para me impedir de cometer uma loucura. Acabei indo com ele e fui parar na casa de uma família ligada à igreja batista. Como fui muito bem acolhida por eles decidi ficar morando com aquela família, mas abri temporariamente mão do meu sonho de ser atriz, e isso só voltou um tempo depois quando o pastor me incentivou a estudar teatro e eu comecei a fazer projetos teatrais na igreja.

Reportagem da Folha de SP de 2022 mostrou moradores sem-teto dormindo no Tietê. Esse foi o lugar que Ana se refugiou por dois meses quando ficou sem moradia.

Você sempre ressalta em suas entrevistas sobre a importância do teatro em sua vida. Como é essa ligação e com o cinema?

Ana: Creio que começou ainda no ventre da minha mãe, e foi se fortalecendo a cada novo trabalho como a peça “Boca de Ouro” onde fazia  a Guigi, nos teatros da igreja em São Paulo, nos grupos de Belém do Pará que eu assisti, no Cedenpa. O teatro é o primeiro, o segundo e o terceiro lugar no meu trabalho como atriz. Eu nunca tive esse desejo de ser uma atriz de TV. A minha entrada foi em consequência do teatro e do cinema. Eu não queria e não buscava fama ou sucesso. Depois de anos morando em São Paulo, decidi que queria experimentar o cinema e me mudei para o Rio de Janeiro e acabei me envolvendo com o grupo de teatro “Nós do Morro”.  Uma produtora da Globo me viu, pediu um texto e acabou gostando do meu trabalho. Fiz um teste para trabalhar no “Linha Direta”. Eu passei, mas eu buscava os trabalhos que tinham mais uma linha popular. Recebi o convite para a novela “Viver a vida” e um trabalho foi levando a outro. Fiz diferentes temporadas de Malhação ( “Toda forma de amar”, “Seu lugar no mundo” e “Conectados”). Fiz também “Os Dias eram assim” , “Segundo Sol “, “Sob Pressão” e “Verdades Secretas 1”. Prá mim, todos os personagens são grandes e importantes numa trama independentemente se é um personagem fixo ou uma participação. Na Record, fiz “Vidas Opostas” e  “Conselho Tutelar”.  Basta o ator imprimir sua marca e fazer um trabalho de composição para um personagem ser forte. No streaming, fiz um trabalho na Netflix: “Confissões de um garota excluída”, que faço a lado da Klara Castanho. Em 2018, recebi o convite para viver Teresa de Jesus, mãe do Martinho da Vila, e essa peça me deu muitas alegrias. Em 2011, fui premiada pelo filme “Vamos fazer um brinde”, e receber esse prêmio ao lado de atrizes como Dira Paes e Bárbara Borges que eu admirava foi um grande orgulho.

Em “Mar do Sertão” você teve uma participação muito elogiada pela crítica e conquistou o público. Você relata em uma das suas entrevistas que um fã lhe contactou pelo Instagram dizendo que sua personagem o ajudava no tratamento dele contra a depressão.

Ana: “Mar do Sertão” foi um presente do Mario Teixeira e que nunca vou me esquecer. A Ismênia foi ganhando força no decorrer da novela e a personagem cresceu muito. Ela era uma mulher dura, rude, governanta daquela família, mas também conselheira de muitos personagens, e de repente aquela mulher foi tomando conta daquele espaço e movimentando as ações. Tive várias cenas inesquecíveis, como por exemplo com Deborah Block. Nossa sintonia acontecia antes e durante as gravações e por isso nossas personagens tiveram tanta química. Essa novela foi maravilhosa e a personagem ficará para sempre no meu coração.

Ismênia (Ana) conversando com Xaviera (Giovana Cordeiro) em uma das cenas preferidas de Ana na novela “Mar do Sertão”.
Cumplicidade e parceria com a atriz Débora Block começava nos camarins e ia para a frente das câmeras. “Nós duas nos tornamos muito amigas e estudávamos juntas as personagens”.

Você também ministra uma oficina de atores. Como é esse lado professora?

Ana:  Eu sempre sonhei em ter uma oficina e repassar o meu ofício a outras pessoas. Eu queria escrever, atuar e dirigir e ter a minha escola. Em São Paulo,comecei a dar oficinas nas escolas e no RJ me graduei em Teatro apesar que já dava aula há mais de 20 anos. O nome 3 atos é porque amo esse livro da Bíblia- é o meu preferido- e os atos são os de uma peça de teatro. Na minha oficina faço um trabalho entre voz, corpo, dança e atuação usando meus próprios métodos. Elas duram de seis meses a um ano e eu estimulo o aluno a desenvolver a criatividade e a estudar. Estou repaginando esse trabalho para ele voltar ainda mais forte.

Reportagem sobre Ruth de Souza- Canal Brasil
Léa Garcia e Lucélia Santos em cena da novela “Escrava Isaura”.
Chica Xavier em entrevista ao programa Boa Vontade
No cinema, o filme “A cor púrpura” é o preferido da atriz Ana Miranda. “Já perdi a conta de quantas vezes eu vi. Tenho até o DVD”.
Medéia é a personagem que gostaria de interpretar na TV
Série “Amigas para Sempre” é a sua obra preferida no momento. “Já vi cinco vezes”, diz Ana
Série sobre vampiros também estão no topo da lista. Ana diz que vê todas do gênero.

Jornalista, roteirista, escritor e ator brasileiro com mais de 20 anos de experiência em comunicação.Vivo atualmente em Barcelona onde trabalho como correspondente internacional, mas já morei em outros países, como Portugal, Irlanda, EUA e Itália onde sempre estive envolvido com projetos na área de comunicação- minha grande paixão-.Como roteirista, destaco a coautoria na sinopse e no 1 capítulo da novela "O Sétimo Guardião" (TV Globo/2019), o documentário "Quem somos nós?", sobre exclusão social, e o curta-metragem "As cartas de Sofia".Como repórter, trabalhei em grandes grupos de comunicação no Brasil, como RBS, RAC e RIC. Ganhei o prêmio Yara de Comunicação (categoria impresso) em 2013 com uma reportagem sobre as diferentes famílias e histórias de vida às margens do rio Piracicaba (SP). Fui finalista do prêmio Unimed de Jornalismo/SC com uma reportagem sobre gravidez precoce.

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