Diário de um imigrante- cap 13

Talvez uma das coisas mais difíceis de passar datas comemorativas fora de casa seja a distância dos amigos e da família, pois muitas vezes você acaba se sentindo muito sozinho. Então, estar em um país distante, sem conexão com as pessoas que você realmente ama e que te amam é uma tarefa bastante complicada, por isso, é aconselhável nestas datas mais festivas quando tendemos a ficar mais frágeis que ao menos estejamos rodeados de “pessoas do bem”. Os novos amigos de um intercâmbio passam a ser a nossa nova família durante aquele período, e muitos deles levamos depois para a vida (graças a Deus, mantenho amizade, carinho e amor com grande parte deles isso mesmo depois de mais de 10 anos).
Fer e eu, sempre fomos muito abertos, carismáticos e dispostos a fazer novas e boas amizades, e por isso, deixamos amigos em cada uma das cidades e países onde vivemos, e não foi diferente em Dublin. Éramos muito animados, festeiros e sempre estávamos planejando coisas diferentes para fazer, mas se fosse parar e analisar bem a situação, a nossa era a menos confortável de todos porque nossos amigos tinham com algum tipo de trabalho mesmo que fosse algumas horas de limpeza. Ironicamente eu era o único que tinha ficado sem vaga nenhuma durante a crise de 2008. Fer ainda tinha algumas clientes sazonais que ele fazia maquiagem ou cabelo, mas eu estava sem absolutamente nada de trabalho. Havia parado de fazer os bolos e tortas, pois estava começando a ter prejuízo porque muitos clientes que haviam marcado não me pagavam.
Mas era Natal, e nós dois estávamos acostumados a passar em uma grande festa na minha casa no Brasil onde reuníamos a minha família e a dele. Minha mãe fazia aniversário dia 24 de dezembro, e ela não abria mão de ter todos juntos para celebrar. Passava semanas pesquisando as melhores receitas para a ceia de Natal, e claro, o bolo do seu aniversário. Durante o ano., ela fazia o bolo de todo mundo, e no seu dia também merecia algo especial. Só que naquele Natal de 2008 estávamos em outro continente, muito longe de casa e passando por uma situação complicada de desemprego, mas nada nos abalava. Éramos fortes e sabíamos que aquilo seria apenas uma fase ruim- a gente imaginava que a crise de 2008 seria passageira, mas, infelizmente, ela durou muito mais que imaginávamos e nos obrigou meses depois a sair do nosso intercâmbio antes do tempo.

Por mais que existisse a preocupação com o que viria em seguida, decidimos que o Natal seria “à moda brasileira”, com tudo que tínhamos direito. Convidamos os amigos mais próximos-alguns não puderam vir porque também haviam se comprometido com o seus flatmates. Ficou combinado que cada pessoa seria responsável por um prato de doce e salgado e também por trazer suas próprias bebidas. Assim não ficaria pesado pra ninguém.
Só que esse Natal ficou marcado para mim por um outro gesto que Fer e eu tivemos e que nunca mais saiu da minha memória, e realmente me orgulho disso porque são nas pequenas ações que mostramos quem realmente somos. Decidimos fazer um amigo secreto simbólico de 2 euros para cada pessoa. Então, tiramos os nomes e saímos à procura dos presentes. Não seria difícil encontrar porque em Dublin havia uma infinidade de lojinhas com produtos muito baratos. No entanto, decidimos que não compraríamos somente o presente de nosso amigo secreto, mas sim, presentearíamos a cada um deles que estavam ali, pois eles eram a família que não tínhamos perto e que Dublin havia nos dado.
Esse gesto foi simbólico porque se fosse olhar a situação financeira, Fer e eu deveríamos ser os que mais deveriam economizar, principalmente eu, mas é impossível controlar dois cancerianos juntos quando eles saem para fazer compras de Natal. Resumindo: voltamos para casa com presente para todos os nossos amigos e ainda fizemos questão de embrulhar e personalizar cada um deles. Isso realmente ficou para sempre no meu coração porque era a generosidade que minha mãe havia me passado sendo colocada em prática mesmo numa situação adversa para mim.
Quando deu meia noite para nós na Irlanda (20h no Brasil), trocamos os presentes, e começamos a comer. Eu queria esperar até às 4 da manhã (porque seria meia noite no Brasil) para ligar de novo para minha mãe – já havia ligado antes para cumprimenta-la. Ouvir sua voz me acalentou o coração. Ela tinha uma força fora de série (para quem havia passado o que ela passou e ainda sorria e continuava lutando era algo para orgulhar qualquer pessoa). Contarei o que passou com ela em um capítulo especial.
Naquela noite, após desligar o telefone eu tinha uma certeza: as mães não são colocadas nas nossas vidas por mera casualidade do destino. Existe algo muito forte, independentemente do credo religioso de cada um, que nos une a elas. No meu caso, creio muito em Deus, e tenho certeza absoluta que ele me fez ser filho da dona ELIETE porque eu tinha uma missão a cumprir nesta vida, e somente fui descobrir isso seis anos depois com sua ida precoce deste mundo aos 56 anos, e quando tive que recomeçar a viver mesmo sem forças, mas para cumprir a missão que ela havia me incumbido.

Nosso Natal em Dublin foi bastante animado, pois comemos muito bem, graças a Deus, e ao esforço de cada um dos meus amigos presentes à cena. Bebemos, dançamos, jogamos, contamos coisas engraçadas e brindamos à vida. Por mais difícil que fosse a fase éramos todos passageiros naquela viagem. Quantos não gostariam de estar ali no nosso lugar vivendo aquelas experiências.
Eu já pensava no futuro, anos depois, quando tivéssemos um encontro como seria esse momento. Era natural que a vida de cada um de nós tivesse tomado rumos diferentes. Justamente em 2008 antes de nossa viagem eu havia visto uma série “QUERIDOS AMIGOS” de Maria Adelaide Amaral que falava sobre isso. Nela, O brinde erguido por Léo (Dan Stulbach),celebrava o reencontro de um grupo de amigos que viveu os sonhos dos anos 70. Quase 20 anos depois, suas vidas tomaram outros rumos, mas ainda preservavam a cumplicidade e as diferenças inevitáveis entre aqueles que se amam. Trabalho irretocável e delicado da Maria Adelaide. Eu me imaginava um pouco o Léo desta série, pois pensava adiante de como seria um reencontro com eles anos depois em Dublin.

Minha mente de roteirista me levava a sonhar num futuro em revisitar tudo aquilo que estávamos vivendo ali, pois sabia que, infelizmente, tinha data para acabar. Hoje, 13 anos depois de Dublin estamos voltando ao tempo, e muitos destes amigos do passado me procuraram para dizer que estão muito emocionados, pois não se trata apenas da minha história, mas a de cada um deles que também vivenciou tudo aquilo comigo.
Ainda estávamos sob a ressaca do Natal e já tínhamos sido convidados para o aniversário do marido da minha amiga SHEILA. Ela era casada com CESARY um polonês, e eu tinha uma dívida de gratidão e amizade com She porque ela havia conseguido meu primeiro emprego em Dublin: numa gráfica (já relatado em capítulos anteriores). Pedimos autorização para levar nossos dois flatmates: LUCAS e JULIANA (Ju). A festa estava maravilhosa e foi bom para também sair um pouco de casa. She era uma anfitriã maravilhosa. (ela voltará como personagem na fase 2 da Irlanda, em 2016).

Quanto à JULIANA (JU), ela tinha chegado por último na nossa casa e decidimos ajudá-la porque LUCAS que a havia conhecido no aeroporto a caminho de Dublin nos havia dito que ela não estava se adaptando à casa que tinha ido morar e que estava sofrendo porque não conhecia ninguém na cidade. Por sorte e coincidência, Ju estudaria na mesma escola que a gente. Quando a conhecemos já ficamos muito amigos. Ela também era do interior de São Paulo, assim como nós, mas de Catanduva, e foi graças a ela que aprendi a gostar de Vitor e Léo de tanto que ela ouvia. Ju foi uma amiga muito importante no nosso processo de fortalecimento em Dublin. Era doce, meiga, e tinha um coração bastante grande. Fazia aniversário dia 12 de dezembro e planejamos uma festa surpresa e fizemos questão de dar o bolo de presente (foi o último bolo que fiz em Dublin). Ju entrará mais fortemente na 2 fase de Dublin, em 2016. Ela foi a única pessoa daquela época ao lado de SHE que nunca mais voltou a viver no Brasil. Ambas vivem em Dublin, e Ju teve uma participação decisiva no meu retorno à Dublin em 2016.


UMA BAIANA PERDIDA NO CENTRO DE DUBLIN – ENCONTRO CASUAL QUE VIROU CASO DE PAIXÃO
Fer e eu, éramos típicos exploradores daquela cidade. Mesmo o frio constante, a chuva e o vento gelado e cortante não eram suficientes para nos segurar em casa. Precisávamos sair para buscar trabalho. Então, todos os dias tomávamos um café da manhã reforçado e saíamos pela cidade por diferentes zonas. E foi justamente numa manhã qualquer destas que encontramos JAQUELINE (JAK), uma baiana de Salvador, que também entraria para nosso seleto grupo de amigos.
Vocês perceberam que nessa nossa jornada irlandesa as mulheres dominam todas nossas amizades e ações? Quase não tínhamos amigos homens, com exceção de Rômulo, Davi e Everson, que ficaram muito próximos e em quem confiávamos.
Naquela tarde chuvosa (todas eram assim), estávamos andando por uma das principais avenidas de Dublin quando JAK ouviu Fer e eu falando muito alto em português. Ela estava totalmente perdida e decidiu se aproximar prá pedir ajuda. Fernando era mais atirado e já abraçava a pessoa como se a conhecesse. Ele perguntava mil coisas, já ia contando sobre a gente. Fazia parte do seu perfil esse jeito despojado e carismático. Ele sempre foi muito fácil de fazer amizades que eu. No início, eu era mais tímido, diria reservado, talvez, por já ter sofrido muitas decepções com amizades eu não me soltava logo de cara, mas se sentia que a pessoa era do bem, então, eu já virava amigo íntimo também, mas com JAK era impossível não se apaixonar.
Baiana arretada com aquele sotaque gostoso e com uma risada contagiante. Ela já se apresentou xingando o vento e tentando equilibrar a sombrinha. Chovia, mas não era uma chuva forte, mas o vento fazia parecer tudo mais intenso. “Que diabo de tempo, é esse, gente? Onde eu vim parar? Quero sol de volta. Quero Salvador”. Com isso, ela já tinha quebrado o gelo e a convidamos para ir à nossa casa tomar um café para espantar o frio, já que nenhum dos três ia procurar mais trabalho naquele dia.
JAK era daquelas pessoas fáceis de se encantar, pois tinha um humor muito peculiar e tudo que ela falava nos fazia rir muito. Ficamos muito contentes ao saber que ela também estaria na nossa turma de inglês na escola. Então, vocês já imaginam como eram as nossas aulas, né? Fabiana, Fer, Jak, Ju, eu, e mais alguns amigos que fizemos na classe. Era uma verdadeira festa, mas pra ser bem sincero o que menos falávamos era inglês. A gente até tentava, mas de 15 estudantes, todos eram brasileiros, e prá piorar, a nossa professora GREICE era apaixonada pelo Brasil, amava nossa cultura e queria aprender português. Ela até que se esforçava para ensinar, mas cada um que errava o verbo TO BE ou um ditado, por exemplo, já virava motivo de bagunça. Estou SEGURO que não conseguimos avançar com o inglês ali, mas no quesito amizade tiramos nota 10. Creio que nunca mais aquela escola, DCI, no coração de Dublin, teve uma turma como a nossa.


No meu último dia de aula, Fer e eu decidimos presentear Greice com um porta-retratos com nossa foto. Ela se tornou uma grande amiga e torcia muito pela nossa história. No dia dos Namorados (lá se comemora em fevereiro), quando Fer apareceu com um urso maior que eu na sala de aula, Greice fez a maior festa. Sabe aquelas professoras que nunca sairão da nossa memória pelo afeto? Geralmente temos essa paixão na infância, na pré-escola, mas tanto para mim quanto para Fer nossa melhor professora de toda vida foi e sempre será Greice.
Nunca vou me esquecer que ela nos convidou para sair um dia à noite por Dublin e nos levou num sítio de chás, e sem que os amigos vissem, ela nos deu dinheiro para pagar a conta porque disse que nunca havia tido alunos como nós dois e que ela sentiria muitas saudades quando a gente saísse da escola. São coisas assim que me faz ter certeza que tudo valeu a pena.


Mas voltando à JAK, há três episódios que não têm como não contá-los porque isso me faz rir muito cada vez que me recordo deles e daí me dou conta que vivemos ali os melhores meses das nossas vidas mesmo com todos os perrengues que passamos. Vou dividi-los em cenas porque a baiana foi protagonista dos 3 episódios.

Essa foto foi tirada na nossa virada de ano

CENA 1: O quarteto inseparável, JÉ, JAK, FER e eu saímos em busca de um açougue em Dublin porque era mais barato e Jak havia prometido comprar fígado para Fer (eu odiavaaaaa) e coraçãozinho de galinha prá mim (ia fazer assado). Demoramos a encontrar o bendito do açougue. Os 4 andavam grudados por causa do frio, e quando finalmente encontramos o lugar só havia fígado. Fiz cara de cachorro pidão na chuva, mas Jak prometeu que no próximo fim de semana faria coraçãozinho e ainda uma sobremesa surpresa prá mim, receita de sua mãe (ela sabia que eu amava doces). Mas quando estávamos saindo do açougue, a sombrinha dela saiu voando por causa do vento e Jak esqueceu que estava segurando o pacote e deixou cair na poça de água. Por sorte estava no saquinho e não molhou, mas ver Jak correndo atrás da sombrinha nunca mais vou esquecer. Ela corria, gritava e e xingava o vento. Quando voltou estava toda enxarcada da chuva. A risada correu solta. O mais legal da nossa amizade é que ríamos das nossas desgraças. O bom humor era o que nos salvava.
CENA 2: Jak, Fer e eu estávamos voltando da casa de Jéssyka de ônibus. Era bem tarde, final de semana. Chovia e fazia muitoooo frio (isso já não é mais uma novidade aqui, ne?), mas pra variar, os três atrapalhados pegaram o ônibus errado e quando nos demos conta que estávamos indo para um lugar estranho saímos gritando do segundo andar do ônibus até alcançar o motorista no piso inferior. As pessoas nos olhavam pensando que éramos loucos, mas não para por aí. Ao descer nos demos conta que nenhum dos três tinha mais dinheiro. A solução? Enfrentar a noite gelada e ir caminhando cerca de 40 minutos até nossa casa. Jak xingava muito e ao mesmo tempo ria da nossa situação de intercambistas à beira da falência, mas pra afugentar o frio a gente se agarrou e descemos os três como carrapatos grudados.
CENA 3: Se o Natal de 2008 havia sido cheio de gente e mais animado, o Réveillon daquele ano foi bastante estranho prá mim. Em Dublin, por causa do frio, as pessoas não saem de casa, exceto os que decidem se arriscar a passar muito frio na rua antes de chegar aos pubs, mas não há fogos de artifício e nem animação nas ruas, e muito menos gente vestida de cores alegres. O negro dos casacos predomina. Sem dinheiro para ir aos pubs, decidimos passar na casa de Jak. Ela estava fatal de saudades da família, e bateu uma crise que queria sua “mainha”, o sol de Salvador, as comidas do Brasil, enfim, era nostalgia pura. Ela chorava e ria. Jé também estava triste porque seu namorado Rômulo havia sido escalado para abrir a padaria no outro dia pela manhã e havia decidido dormir mais cedo e Fer também estava apagado porque suas amigas não estavam animadas. Eu era o único que não deixava a peteca cair, e vendo a depressão dos três comecei a dar broncas e inventei de pedir pra Jak colocar músicas do Brasil. Daí sim que tudo desandou. Ela cantava e chorava mais ainda (kkk). Foi uma noite estranha e bem diferente do que eu queria ter vivido na minha primeira virada de ano em Dublin, mas Jak mesmo chorando era divertida e só de estar com eles valia a pena cada momento. Nos abraços de 2008 para 2009 eu pedi para que Deus me desse um trabalho porque eu não queria voltar para casa.
A PRIMEIRA NEVE DA MINHA VIDA ME FEZ CHORAR COMO CRIANÇA E A VIVER UM SONHO DE OLHOS ABERTOS

Eu cresci vendo novelas e filmes, mas todo final de ano eu aguardava com ansiedade os lançamentos de Natal porque geralmente eram histórias familiares que me emocionavam muito, e se passavam em cidades onde nevava. Eu achava tudo aquilo fascinante. Um clássico da minha geração foi “Esqueceram de mim”, protagonizado por Macaulay Culkin, mas eu fiquei apaixonado pelo segundo filme que mostrava a personagem de Culkin (o pequeno Kevin) esquecido pela família em Nova Iorque.


Era incrível como aquela cidade me encantava, principalmente porque era Natal e nevava. Tudo aquilo para mim era um sonho. Será que existia de verdade? Como era o hotel que Kevin havia se hospedado? E a pista de patinação de gelo? Ah eram tantos cenários que minha imaginação fértil viajava a cada cena. Eu queria estar ali. Sonhava em viver tudo aquilo de perto.
O que eu nem imaginava é que anos depois eu estaria participando como jornalista de uma coletiva de imprensa no mesmo hotel onde foi gravado o filme. Dito isso fica a dica: NUNCA PENSE QUE SEUS SONHOS SÃO IMPOSSÍVEIS DE SE REALIZAR. O SONHO SÓ DEPENDE DA GENTE QUERER E LUTAR. EU SOU A PROVA REAL DISSO. SÓ EM SONHOS IMAGINAVA ESTAR UM DIA NAQUELE HOTEL E O DESTINO ME LEVOU ANOS DEPOIS PARA O MESMO LUGAR. (abaixo algumas cenas do filme no hotel e eu no mesmo lugar anos depois).



Nos meus sonhos, a neve sempre esteve presente. Eu queria vê-la de perto, sentir, e quem sabe até provar para ver o gosto. Queria fazer bonecos de neve, esquiar, sonhava em me atolar dentro e ficar só com a cabeça de fora! Sonhos, sonhos e sonhos que eu me permitia viver, mas que eram apenas fantasias de um roteirista sonhador. Eu nem imaginava que Dublin também me daria isso como presente.
E foi tudo muito inesperado e mágico. As vezes penso que foi um presente de Deus para aliviar meu coração que já começava a ficar preocupado pela falta de trabalho. Eu não aceitava sair da Irlanda antes de completar o meu visto de estudante. Ainda faltavam seis meses. Era muito tempo, mas eu não tinha plano B. Ou era achar trabalho ou voltar para casa.
Como sempre fazíamos à noite por falta de opção assistíamos um filme em inglês no computador de Lucas (ele era o único que tinha um portátil). Ele nos emprestava e ficava mais de uma hora falando com a namorada pelo celular e Ju, às vezes, via com a gente, e outras ia dormir mais cedo porque ela tinha conseguido um trabalho. Estávamos vendo uma antiga série que passou no SBT, “Pássaros Feridos”, maravilhosa, por sinal, assim como o livro. (Fer sempre dormia nos filmes e sendo em inglês que ele odiava, era ainda mais fácil de pegar no sono). Eu havia levantado para preparar meu jantar diário: bolachas digestivas com geleia de morango e chocolate gelado batido. Ou era isso ou então nuggets, arroz, brócolis e cenoura. Não fugia desse cardápio, mas naquela noite eu não queria cozinhar e optei pelas bolachas.
Quando fui pegar um copo na pia olhei pela janela e vi que estava tudo branco lá fora. Parecia neve, mas não! Eu só podia estar sonhando, pois nossa professora Greice havia dito que há anos não nevava em Dublin, e que era raro de acontecer. Que falta de sorte! Não seria daquela vez que eu a veria, mas… sempre há um mais né? E se… ? E se estava nevando?
Bom, não custava abrir a porta e ver o que era aquilo. Podia ser espuma de um cano de algum vizinho, sei lá, qualquer coisa, mas não imaginava que seria neve. Saí na terraça por sair, e quando vi todo o jardim e piso cobertos pela neve comecei a gritar como um louco. Creio que meus vizinhos irlandeses, seguramente, pensaram: “esses brasileiros são muito estranhos mesmos. Gritam por causa de uma neve!”..
Assustados com os meus gritos, Fer, Lucas e Ju saíram assustados. Eu estava no meio do jardim pulando, mas saltava como um canguru. Realmente se eu fosse um Irlandês aquela hora eu também acharia que aquela pessoa saltitando no frio e na neve tinha algum problema de cabeça.
Mas ao ver minha alegria contagiante, os outros três se juntaram à festa, porém, Ju e Fer sentiam muito mais frio que Lucas e eu. Ambos brincaram um pouco e correram para dentro da casa para se aquecer. Eu me recusava a sair dali. Eu não sabia se aquilo era um sonho. Se fosse, a qualquer momento eu podia acordar. Então que me deixassem vivê-lo em minha plenitude com tudooo o que eu tinha direito.
Eu fazia pequenas bolas de neve e atirava contra a parede, jogava neve para o alto, rolava no chão sem medo de ser feliz. Já que era para se jogar eu me jogaria com força. Tenho duas amigas muito queridas: Aline Ribeiro e Patrícia Borges que sempre me dizem que ao ler o que escrevo conseguem se transportar para o local dos acontecimentos, pois essa parte é dedicada a vocês. Quero que sintam a emoção que eu senti naquele dia. Fechem o olho e se transportem automaticamente para a ilha da esmeralda.
Eu era um homem adulto, barbado, formado, mas que voltei a ser criança ao ver a neve, e como era boa essa sensação de brincar sem medo de ser julgado. Somente quem vive isso em sua totalidade entenderá o que estou dizendo. Essa cena me faz lembrar de uma vivida pela protagonista de Carinha de Anjo, a atriz Bia Arantes (Cecília) ao ver a neve pela primeira vez em sua lua de mel.
Depois de brincar muito na minha terraça- no final, somente eu encarei o frio e Lucas também entrou para trocar de roupa, decidi sair na frente de minha casa para ver como estava a nossa rua. A neve já começava a tomar conta de todo cenário. Era lindo, mágico e encantador. Eu olhava tudo aquilo à minha volta e o meu desejo era agradecer a oportunidade por estar ali. Eu não sabia o que a vida me reservaria no futuro ou se eu estaria vivo para contar esse episódio, então, eu queria viver aquilo no presente com tudo o que tinha direito. Com a companhia de Lucas saí caminhando, fiz algumas fotos, escrevi meu nome nos vidros dos carros e depois de um bom tempo voltei à casa.



Eu não imaginava que no outro dia a neve seguiria firme e forte a ponto de nossas aulas terem sido canceladas. Aproveitei que não teria aulas para ir a um parque próximo da minha casa e que estava totalmente coberto de neve. Ali eu me sentia como o Kevin do filme. Ao voltar para casa discuti com Fernando porque ele não queria sair no frio para ver a neve. Lembro que foi a primeira vez que discutimos mais feio na viagem. “Pô, para de reclamar do frio. Talvez a gente tenha que voltar para o Brasil dentro de alguns dias e você vai deixar que o frio te impeça de viver esse momento único? Para de ser mal agradecido e mal humorado. Quantos dariam tudooo pra estar aqui no nosso lugar? Vamos fazer valer essa experiência até o final porque caso a gente tenha que voltar pelo menos a gente viveu tudo isso aqui”.
Depois dessa bronca vi que ele ficou pensativo, mas como era orgulhoso me disse que nada o faria mudar de ideia e que não ia sair no frio pra ver neve- sempre tinha crises de renite, sinusite e muita alergia. Eu também não dei o braço a torcer e falei que ia sozinho para a região da Spire fazer fotos. Saí sem dar nenhum beijo ou abraço nele, mas quando estava na esquina de casa, escutei um grito; “Dé (ele me chamava assim), espera que eu vou também”.
Sorri por dentro de alegria. Aquele era o Fer que eu conhecia e que havia me apaixonado. A gente podia brigar, ter mil diferenças e tínhamos, mas éramos também muito unidos e nos completávamos. Um defenderia o outro até o final. Isso era amor, e nossa relação havia começado justamente num ato de entrega de ambos os lados quando ele deixou tudo para se arriscar a viver comigo em outro estado justamente quando eu havia deixado minha vida por uma outra pessoa e ela me apunhalado. Maktub!
Fomos caminhando pela cidade e pouco a pouco Fer foi se envolvendo com aquele clima. Todos os lugares estavam cobertos pela neve, as pessoas haviam tomado coragem para sair às ruas e viver aquele momento. Era uma sensação indescritível, mágica. Havia uma conexão mesmo que não soubéssemos quem eram aquelas pessoas. Talvez muitos estivessem tristes e desanimados como nós porque a crise afetava até mesmo os irlandeses de classes mais altas, e com certeza ali naquela neve haviam muitas histórias cruzadas de desempregados, de estudantes, de imigrantes, de pais de famílias, mas independente da nossa situação, nós tínhamos que agradecer por estarmos ali, vivos e com saúde.
A neve podia ser o indício de coisas novas para nós, e mesmo sem saber ela significou um processo de mudança interno para nossas vidas. Foi como se ela nos mostrasse que, independentemente de qualquer coisa, sempre haveria um motivo para sorrir. E esse sorriso espontâneo veio dias depois quando Fer me fez uma proposta inusitada que, a princípio, me deixou muitooo pensativo porque isso significava uma mudança radical em nossos planos, uma saída prematura de Dublin e o início de uma jornada arriscada e sem nenhuma garantia de sucesso em outro país, mas éramos aventureiros. Por quê não tentar??? Naquela noite, me inspirei numa cena clássica do Filme “E O vento Levou”, onde a protagonista Scarlett O´Hara (Vivian Leigh) jura a si mesma que não desistiria de lutar. Então, respirei fundo e disse a mim mesmo em pensamento: “AMANHÃ SERÁ OUTRO DIA!!”.
VEM POR AÍ: No próximo e último episódio da 1 fase da IRLANDA descubra qual foi a proposta de Fernando, como foi a nossa saída de Dublin, a triste despedida dos amigos com uma visita aos cliffs, uma viagem inesperada, mas emocionante para Paris, e o recomeço da nossa história em outro país.
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