Diário de um imigrante- Cap 17

Sou um cinéfilo de carteirinha. Quer me agradar? Me convide para uma sessão de cinema. Pode ser caseira, na minha ou na sua casa ou então para ir à uma sala de cinema. Gosto de todo ritual: o de comprar pipocas -prefiro as doces-, de sentar na poltrona e de ver os trailers em exibição. E quando começa o filme, amo ver a abertura, os créditos iniciais, a fotografia, o som e o primeiro diálogo. Em anos de estudo, e depois já como profissional, eu aprendi que os primeiros dez minutos de cena são fundamentais para prender a atenção do público. Se você não cativá-lo ali, dificilmente, conseguirá fazê-lo gostar de sua história, a não ser que tire literalmente um “coelho da cartola” e o surpreenda com cenas fantásticas ali por diante e que o façam gostar de sua trama. É por isso que quando estou escrevendo meus roteiros, dou tudo o que posso na cena de abertura porque quero fisgar o meu público ali. Quero criar nele o desejo de continuar vendo o meu projeto.
Mas, como em tudo nessa vida, há exceções, e um dos filmes que não me prendeu nos 10 primeiros minutos, mas decidi dar uma chance e depois me surpreendeu foi um dos queridinhos da década de 90: “Ghost”. Creio que fui levado ao cinema pelo boca-boca de amigos, e saí emocionado, chorando feito criança. Por outro lado, o “Sexto Sentido” me prendeu do início ao fim. A esta altura do texto, vocês devem estar se perguntando: “ o que tem a ver a série “DIÁRIO DE UM IMIGRANTE” com “Ghost” e “O Sexto Sentido”? A resposta, meus caros leitores, é: TUDO!
Vocês já perceberam que este projeto tem um diferencial em relação a outros relatos, não? Eu escrevo fazendo analogias de minha trajetória com cenas de novelas, séries e filmes. “Eu vejo gente morta!”. Essa frase icônica do menininho Cole Sear, em “O Sexto Sentido” até hoje é lembrada pelos cinéfilos de plantão. E o que dizer da cena da vidente falsa de “Ghost”, a maravilhosa Whoopi Goldberg, que de tanto mentir acabava vendo e incorporando espíritos de verdade? Está feita a mistura inusitada!


Junte estes dois clássicos do nosso cinema mundial e os coloque no meu caminho de imigrante em Portugal, justo eu que adoro cinema, mas que fujo de histórias de terror ou com essa temática de espíritos porque realmente tenho medo e fico impressionado.
No entanto, na minha jornada de imigrante em diferentes países, passei por muitas coisas boas e inesquecíveis, mas também por muitos “perrengues” e situações difíceis, e algumas delas aconteceram em Portugal.
Nunca imaginei que teria que conviver com espíritos de verdade. Só de pensar naquilo eu já ficava arrepiado, entrava em pânico, queria chorar, mas ou era enfrentar as almas penadas do outro mundo ou desistir de vez do meu sonho europeu.
No caso de Ghost, eu só não faço a analogia, mas como também decidi incorporar a personagem fantástica de Whoopi Goldberg, ganhadora do Oscar de melhor atriz coadjuvante, na na hilária cena dos espíritos.
Para quem não se lembra do filme, ela é uma golpista que engana os clientes dizendo ver o espírito dos seus antepassados, mas o tiro sai pela culatra quando ela realmente passa a ver o espírito de Sam (personagem do saudoso Patrick Swayze).
INSPIRAÇÃO DE GHOST ME AJUDOU A LIBERTAR-ME DE GRANDE PROBLEMA EM PORTUGAL

Pois fui buscar em Ghost a inspiração para livrar-me de um grande problema em Portugal. Eu queria muito que o meu trabalho de gerente em “O Boticário” desse certo, afinal de contas, ele significaria a minha permanência no país, um possível visto de trabalho ou até mesmo a extensão do meu visto de estudante na Irlanda com o dinheiro que eu juntasse nos próximos meses. Depois de tantos meses de desemprego na Irlanda, ter a oportunidade de um trabalho estável em Portugal era um presente.
Só que eu havia sido contratado já sabendo dos problemas que a minha “futura loja” estava atravessando: com baixas médicas constantes e funcionárias desmotivadas. A esperança de minha gerente era de que a contratação de um homem iria contribuir para dar mais estabilidade à equipe, formada só por mulheres. Além de mim, de Lara e Teresa, haviam outras três funcionárias fixas: Gilda e Luiza, que eram brasileiras, e Maria José, que era portuguesa e que já estava há anos na equipe. Ela era a atual gerente, e o “X do problema”.
Quando comecei, Gilda e Luiza estavam de baixa (licença médica). Antes de começar pra valer como gerente passei por um bom treinamento com duas brasileiras em uma outra loja: Joana e Tereza, e foram elas que me ensinaram todo o procedimento do grupo, principalmente Joana que também era gerente e sabia muito sobre o grupo.
No meu primeiro dia na loja já percebi que travaria uma batalha. Minha supervisora havia enviado um e-mail para Maria José contando que eu seria o novo gerente. E claro, que isso não foi bem aceito por ela. Maria estava acostumada a fazer o que bem entendia sem ter nenhuma supervisão. Ela não respeitava nenhuma regra, nem mesmo uma das mais básicas e importantes numa loja que se vendia beleza, cuidado com o corpo e com a pele: ela não limpava a loja quando terminava o expediente e muito menos antes de abrir. Deixava os clientes entrarem e não ia atendê-los. Ficava conversando com os funcionários das lojas vizinhas e somente quando era questionada por um cliente é que decidia lhe dar atenção, ou seja, não era nem um pouco simpática. O que dava munição para que Maria José continuasse disparando sua artilharia sem nenhuma punição era o fato de a loja ser distante, fora de Lisboa, e não receber a visita de supervisores. Creio que como não dava nenhum lucro para o grupo, ela só era mantida porque o ponto era excelente dentro de um centro comercial que recebia muitos turistas, e só por essa razão ainda era mantida na rede.

A tentativa de Joana, minha supervisora, de contratar uma nova equipe para o Montijo era realmente dar uma sobrevida à loja que estava nos seus últimos segundos de vida. E nossa contratação caiu como uma bomba para Mara José. Pense numa vilã cômica de novela? Pois era ela! Cara fechada, mal humorada, extremamente antipática e grossa com os clientes e totalmente ríspida comigo. Respondia parcialmente minhas perguntas e não gostava de ser questionada mais de uma vez. Não tinha paciência e muito menos didática para ensinar. Infelizmente eu era obrigado a conviver com essa personagem maquiavélica até porque necessitava que ela me passasse coisas importantes, como o cadastro das vendas no sistema, o uso de notas quando o sistema caia, a abertura e o fechamento do caixa, enfim, toda parte mais burocrática e que eu desconhecia.
Eram coisas que não havia aprendido em meu treinamento que havia sido mais focado nos produtos. Imaginava-se que Maria José me passaria toda rotina, mas foi um erro da supervisão pensar isso, pois ela não estava nem um pouco interessada em me ajudar. Na verdade, sua intenção era me “queimar” e continuar sua boa vida de gerente sem fazer nada. Por sorte, recorri nos primeiros dias à ajuda de Joana e Teresa, que haviam me passado o treinamento e que moravam no Montijo.
O caminho para me livrar daquela “erva daninha”, Maria, surgiu inesperadamente. Numa das raras conversas que tivemos, ela me disse que odiava filmes de terror. Só ia ao cinema para ver comédia ou algo de aventura. Ao escutar isso foi como se uma luz acendesse dentro de mim. Sabe aquele riso que você dá por dentro sem mostrar os sorrisos? Um sorriso de vitória contido? Era esse que eu dei.
Eu já tinha um plano de como faria Maria José sair da minha equipe, mas ele só começaria a ser executado no outro dia. E que sorte eu tinha de também ser ator. Fiz teatro no Brasil por mais de 10 anos, e consegui minha DRT de ator pelos trabalhos realizados pela CIA “Se Liga” de Teatro, hoje, “Trilhas da Arte”. Estava na hora de usar o meu talento artístico como ator. Apesar de um pouco “enferrujado” por tanto tempo sem atuar eu ainda sabia como interpretar uma boa cena.
QUANDO OS ESPÍRITOS DE GHOST ENTRAM EM CENA A BRUXA MÁ PEGA SUA VASSOURA E SAÍ DE CENA
Naquela noite ao voltar para casa fiquei pensando no que Maria José tinha me dito: “que a única coisa que ela não gostava eram histórias de terror porque depois custava a dormir”. Bingo! Era por aí que ia “atacá-la”, ou seja, vencê-la no seu ponto fraco: o medo. Me considero uma pessoa super do bem e amigo de todos, mas paciência tem limites. Ela era uma pessoa com uma energia pesada, com tiradas irônicas, grosseiras, não me ajudava em nada e podia atrapalhar minha intenção de ficar na empresa e prorrogar minha permanência depois de um ano. Então, a solução seria forçar sua saída.
“Filmes de espíritos”. Era isso que ela havia falado. Me vinham dois à cabeça: Ghost e O Sexto Sentido, naquela famosa e arrepiante cena do menino falando que via mortos, mas além dessa cena vinha outra ainda mais forte e icônica: a de Whoopy em Ghost na sessão de charlatanismo quando ela realmente passava a ver os espíritos. Era o que eu ia fazer com Maria José.
Eu recriaria a cena de Ghost sem que ela desconfiasse que se tratava de uma encenação.
Era uma segunda-feira. Naquela semana eu abriria a loja, Maria José entraria às 12h, e Teresa e Lara no turno da tarde, das 16h até o fechamento (meia noite). A escala estava perfeita para eu botar o meu plano em prática porque conhecendo um pouco de Maria José como eu já conhecia, seguramente, na hora do meu almoço ela comentaria alguma coisa com as meninas e elas me contariam tudo (já havia avisado as duas que faria uma encenação com Maria, mas não tinha dado detalhes. Eu queria que fosse surpresa pra elas também).
Como sempre, ela não era nada pontual e não respeitava as ordens. Joana havia me ensinado que era obrigatório o uso de uniforme e maquiagem para as meninas. Para isso, elas deveriam chegar antes e se maquiarem. Maria além de chegar atrasada e com o uniforme todo desengonçado não passava maquiagem. Dava a desculpa que não gostava de se maquiar. Então, comecei a obrigá-la a assinar uma advertência, e ela ficou ressabiada e começou a usar batom.
Aproveitando-me do fato de segunda-feira de manhã ser um dia relativamente tranquilo, subi ao depósito com a desculpa de buscar alguns produtos para repor o estoque, e a deixei no caixa. Era quase uma da tarde quando derrubei uma caixa de cremes no chão para fazer barulho e soltei um grito alto: “SOCORROOOO”.
Em questão de segundos, ela estava na escada me chamando e perguntando se havia acontecido algo. Momento ideal para dar entrada ao meu personagem. Desci correndo as escadas e pedi à ela que me desse um copo de água. “O que aconteceu? Por que você gritou socorro lá do depósito?”.
Comecei a chorar. “Eu não queria, juro que eu não queria ser assim, Maria”.
– “Não queria o quê? Do que você tá falando?”, ela me questionou intrigada.
-Continuei chorando (sempre tive facilidade para chorar em cena). “Eu não te contei uma coisa sobre mim porque tem pessoas que não entendem direito e que sentem medo, mas fazia muito tempo que eles não vinham me ver e hoje voltaram”. Totalmente intrigada e já demonstrando nervosismo, Maria José disse que não estava entendendo nada e perguntou se eu tinha algum problema de saúde ou algo na cabeça.
Segurei o riso. Meu plano estava indo no caminho certo. Prossegui a encenação. Precisava dar mais consistência à história. “Ontem, você lembra que te perguntei sobre suas histórias de filmes preferidas e você me disse que não gostava das histórias de terror? Eu fiquei quieto porque desde pequeno eu vejo eles”.
“Você vê quem???”- ela me perguntou já bastante alterada.
“Eu ouço e vejo os mortos”- disse sem olhar para sua cara porque estava difícil segurar o riso. Nessa hora, ela deu um passo para trás. Parecia que estava com medo de mim. Respirei fundo e prossegui, desta vez, olhando-a de frente. “Eu nunca quis ser assim, mas os mortos me buscam e muitas vezes mandam recados. Alguns deles estão de passagem e querem voltar pra esse mundo. Querem falar com suas famílias e me usam para mandar recados”.

Ela estava apavorada e começou a caminhar em direção contrária. De costas para mim, ela disse em alto e bom som como uma ordem expressa. “Eu não conheço você, mas não gosto dessas brincadeiras. É melhor você parar porque eu não quero essas intimidades e ….”.
Antes mesmo dela continuar falando eu soltei um novo grito que a fez saltar como pipoca na panela. Maria José era baixinha. Não devia ter mais de 1, 55m, mas com o meu grito saiu bastante do chão. “Você tá louco? Quer me matar do coração?”. Seu olhar era de uma mulher furiosa e ao mesmo tempo amedrontada.
– “ Nãoooo!. Deixem-na em paz. Vão embora daqui, por favor”. Eu continuava chorando. Ela estava totalmente perdida. Disse que ia ao banheiro e aproveitaria para fumar (os banheiros ficavam fora da loja no final do corredor). Vi quando ela passou por uma das lojas vizinhas à nossa e chamou sua amiga que trabalhava ali para que a acompanhasse para fumar. Não tenho dúvidas que era para fofocar sobre o ocorrido. A pressa dela em sair me fez recordar de outro personagem “fantasma” das novelas: “Alexandre”, de Guilherme Fontes, na novela “A Viagem”.
Com a saída de Maria José pude soltar todo o riso que estava acumulado dentro de mim. Eu estava orgulhoso de minha interpretação. Mesmo há anos afastado dos palcos eu havia feito uma excelente cena. Creio que arrancaria aplausos. Depois de quase 15 minutos, quando o permitido é sair para fumar por cinco minutos a cada uma hora, vi pelo espelho que Maria José estava voltando, mas não deixei que ela percebesse que eu a havia visto. Então, comecei a segunda parte do plano.
Eu estava sentado no caixa e gesticulava muito como se alguém estivesse ao meu lado. Eu falava com uma pessoa imaginária. Percebi que ela me observava de longe e aumentei o tom de discussão dizendo coisas desconexas. Depois de alguns minutos levantei a cabeça e fingi surpresa ao vê-la. “Ah você chegou? Que bom!!”. Eu estava ofegante.
“Você tava falando sozinho?”- perguntou Maria.
Fingi seriedade. “Você sabe que não, mas você nunca vai entender. Cuida da loja pra mim porque vou até o banheiro molhar o meu rosto”.
Ela não respondeu nada. Estava ainda mais carrancuda, mas agora em sua cara havia um semblante de dúvida misturado ao medo. Havia ao menos conseguido deixá-la intrigada. No mínimo, ela pensava que eu era um louco. Quando eu estava saindo do caixa e ela se aproximando, olhei para o lado como se estivesse conversando com alguém e soltei um novo grito. “Fica aí”. Ela deu um novo salto e gritou: “Que susto!”. Sai rapidamente resmungando como se quisesse fugir dali. Eu tinha certeza que ela estava apavorada, mas durona como era não ia dar o braço a torcer.
Quando saí para almoçar e Lara e Teresa entraram para o turno da tarde, Maria José ficou sozinha com elas. A oportunidade era perfeita para ela disparar sua artilharia contra o brasileirinho (eu). Eram três portuguesas e somente eu de estrangeiro. Mal ela sabia que as meninas haviam se tornado muito amigas minhas e também já sabiam de sua “fama”. Naquele dia como eu havia entrado mais cedo, sairia antes que Maria José, mas eu estava muito curioso pra saber o que ela havia comentado com as meninas e pedi pra que Teresa me ligasse na hora do seu jantar.
Até hoje me lembro daquela ligação porque Teresa começava a contar as coisas e gargalhava sem parar e eu fui me contagiando pela sua gargalhada e não podia parar de rir também. Teresa confessou que nunca tinha imaginado que eu faria aquilo e que Maria estava apavorada e com medo que eu fosse um psicopata e pudesse matá-la a qualquer momento. “Eu não quero mais ficar sozinha com aquele homem nunca mais. Ele tem cara de louco. Ele pode fazer algo contra mim. Ele disse que vê espíritos. Eu não sei se isso é verdade, mas e se for? E se baixar algum espírito assassino e ele tentar me matar?… “.
Teresa ia contando os detalhes e eu ia imaginando a cara de Maria José. Tinha valido a pena resgatar meu lado ator, mas ainda faltava a cartada final: o enforcamento.
No outro dia, tínhamos que fazer o inventário da loja (contagem das mercadorias), e conferir os produtos no estoque. Duas pessoas ficariam na loja para atendimento e contagem interna, e outras duas subiriam para o estoque. Quem foi a escolhida por mim para me acompanhar ao estoque? Claro que Maria José. Quando distribuí as tarefas ela arregalou os seus olhos verdes e disse que preferia ficar no atendimento. Daí eu mostrei autoridade de gerente e falei que a queria junto comigo no estoque porque ela conhecia bem os produtos e sabia a quantidade extra que devíamos pedir ao armazém.
Totalmente a contragosto e ressabiada, ela me acompanhou, mas percebi que procurava manter a distância de mim e quando eu me aproximava, ela sempre recuava. Evitava me olhar diretamente. Fingi que não havia percebido nada e deixei o tempo correr. Não podia incorporar espírito a toda hora porque senão ela ia acabar desconfiando.
Quase três horas depois e de passar muitoo nervoso com a maneira ríspida e grosseira que ela me tratava, decidi que era hora de dar o golpe final. Comecei lentamente a falar com “meus amigos imaginários”. Ela olhou muito assustada e falou que ia fazer sua hora de almoço antes. Eu não a deixei sair porque aleguei que tinha uma reunião depois e precisava acabar a contagem antes das 14 horas. Senti que ela queria me fuzilar com os olhos, mas ficou calada.
Quinze minutos depois eu dei início ao meu grande show. Eu discutia com os amigos imaginários, mas sem deixar que minha voz saísse. Em seguida, comecei a brigar com eles fisicamente e simulei um enforcamento. Mas foi tão real a encenação que eu até sentia as mãos me enforcando. Enquanto eu dava meu show Maria José ficou na defensiva gritando por Teresa e Lara que subissem porque tava dando um infarto em mim. “Corre que o homem tá tendo uma coisa e tá morrendo”, ela gritava.
Quando as meninas subiram eu estava deitado de bruços no chão simulando falta de ar. Ao vê-las, pisquei e elas seguraram o riso. Então, comecei a contar minha história: a de que eu via espíritos e que alguns eram do mal e tentaram naquele dia me enforcar. Eu chorava muito. Não preciso dizer que esse foi o último dia que a vi. Maria, finalmente, pediu pra fazer um acordo e alegou que não estava contente com minha gestão porque eu não sabia nada de loja e ainda queria dar ordens, e tinha problemas de cabeça.
Ela nem imaginava que a direção a queria longe dali há muito tempo e que me agradeceram muito por tê-la tirado do grupo, mas ao menos tinha valido momentos de humor depois de tanta raiva que ela me fez passar. Agora sim, eu podia ter paz e trabalhar num ambiente agradável, mas será que tudo seria tranquilo??
MEUS PERRENGUES LUSITANOS
Eu já disse em capítulos anteriores que sou movido a desafios e que mesmo o novo acaba me despertando ainda mais curiosidade. Para mim, estar em outro país e viver outra cultura sempre foi o máximo, mas há limites que precisam ser respeitados. O problema é quando você se atreve a passar estes limites em nome da sua sobrevivência. Eu queria muito vencer em Portugal. Era questão de honra ficar, no mínimo, até o tempo de terminar o meu visto na Irlanda.
Para minha surpresa, eu estava ADORANDO o trabalhando no “O Boticário”. Eu nunca havia feito nada como vendedor e ainda de cara fui escolhido para ser gerente de uma “loja bomba”. Mas com a saída de Maria José, a antiga equipe acabou também sendo desligada e ficamos somente eu, Teresa e Lara. Era a “equipe dos meus sonhos” porque nos dávamos muito bem e havíamos começado juntos. Então, existia uma torcida mútua e um desejo de vitória compartilhado pelos três. O único problema é que um de nós havia ocultado algo importante na entrevista com medo de perder a vaga: Lara. E eu super entendo o lado dela, mas não deixou de ser um baita de um perrengue.
PERRENGUE 1
Lara tinha crises de epilepsia, e quando isso acontecia ela soltava um grito e desmaiava onde estivesse. O perigo era que isso acontecesse algum dia e ela acabasse se machucando. Na primeira vez, por sorte, ela estava comigo no caixa quando se sentiu mal e não chegou a desmaiar, mas daí acabou me confessando que tinha esse problema de saúde, mas que não era frequente.
Pois bem, numa bela tarde de troca de vitrine (montra para os portugueses), que era o dia que a gente colocava as novidades da loja e as promoções, e o dia que mais dava movimento, Lara teve um ataque logo depois de colocarmos os produtos na vitrine. Já íamos abrir a loja e alguns clientes estavam esperando ansiosos do lado de fora.
Lara era alta. Tinha quase 1, 80m de altura, estrutura forte. Já Teresa era bem menor. Por sorte, quando Lara deu o grito e começou a cair Teresa se jogou como um escudo à sua frente e conseguiu evitar a queda brusca. De repente, quando vimos havia um corpo estendido no chão e a loja precisava ser aberta. Tínhamos que tirá-la dali sem que ninguém percebesse porque eu não queria ver nenhum cliente reclamando ou assinando o livro negro de críticas, pois Lara poderia ser dispensada caso descobrissem que era portadora desse problema, e ela era uma das minhas meninas de confiança.

Olhei para a cara de Teresa e disse: “Vamos arrastá-la e esconder o corpo embaixo da escada”. Foi duro carregá-la até ali porque ela pesava bastante. Era literalmente um corpo morto, sem nenhuma reação. Minha preocupação maior era que viesse um cliente surpresa e descobrisse nossa “ocultação de cadáver”.
Funcionava assim: todo mês, cada loja da rede recebia um cliente que, na verdade, era contratado para avaliar a performance da loja: atendimento, limpeza, dentre outros itens. No entanto, eles não revelavam a identidade. Com isso, todo cliente podia ser o tal cliente surpresa, por isso, eu exigia das meninas comprometimento com a limpeza, no atendimento, no uniforme, no uso da maquiagem, etc. Meu objetivo era transformar minha loja em um destaque positivo. Mas naquele caso, se descobrissem o que havia acontecido poderia nos prejudicar.
Creio que o melhor que Lara podia ter feiro era ter contado a verdade logo na entrevista, mas precisando do trabalho e com uma filha pequena para criar, eu conseguia entender a sua situação porque ela não estava fazendo nada ilegal. Era apenas um problema de saúde eventual, mas muitos empregadores não entendiam e a demitiram no passado.
Passado o susto do desmaio, Teresa ficou com Lara até que acordasse e eu fui para o atendimento dos clientes como se nada estivesse acontecendo lá atrás. Lara acabou tendo pequenas crises em outros dias, mas depois começou a faltar. No final das contas, ela decidiu se afastar porque necessitava mudar os medicamentos e não sabia como seria a reação, e ela não queria prejudicar a equipe. Foi um gesto muito bonito dela, e graças a Deus, ela saiu para se tratar que era o mais importante, mas “dona Lara”, “minha morena”, como eu a chamava nos pregou alguns bons sustos e se Maria José estivesse na loja ainda acharia que tinha alguma ligação com os meus espíritos (risos).
PERRENGUE 2
Além de gerenciar a loja, eu também ficava no atendimento, principalmente quando estávamos em duas pessoas. E, modéstia à parte, eu comecei a “vender como água”. As meninas ficavam impressionadas com o meu poder de vendas, justo eu que nunca havia vendido nada na minha vida. O cliente entrava para comprar um creme de mãos e eu o convencia a levar toda linha de produtos. Não tinha venda perdida comigo e essa minha motivação foi sendo passada às meninas e começamos a vender muitooooo bem.
Em poucos meses, nossa loja saltou das últimas posições de faturamento para as cinco primeiras do grupo, de um total de 55 lojas. Quem havia conhecido “O Boticário” do Montijo antes não o reconhecia agora. A loja estava linda e até o nosso diretor havia levado pessoas de sua equipe de marketing e comunicação para ver as mudanças que eu havia implantado. Passamos a ser uma vitrine para o restante do grupo.
Minha loja era falada em reuniões e no correio interno como um exemplo a ser seguido. Das trevas, nós fizemos luz, e esse é um dos meus maiores orgulhos como profissional. Devo isso também às minhas meninas: Lara, Teresa, e depois, à Débora, que veio para a vaga de Lara.


Se eu não amasse tanto a comunicação, acho que teria me encontrado ali. Isso prova mais uma vez que SOMOS CAPAZES DE TUDO, BASTA QUERER! Eu não tinha nenhuma experiência com vendas, gestão de lojas, sempre odiei números, tabelas, e de repente, tive que lidar com metas, cálculos, planejamento, e me saí muito bem porque eu queria vencer, mas isso não me impediu de continuar tendo meus perrengues habituais porque senão não seria eu.
Este outro perrengue foi inesquecível, assim como o jantar na Irlanda (se lembram??).
Vendíamos cremes para o corpo, rosto, perfumes, e estávamos investindo forte na nossa linha de maquiagem. Era por isso que Fernando, meu namorado, havia sido contratado. Ele entendia MUITO dessa área, graças à sua experiência no Brasil. Por outro lado, eu não entendia absolutamente nadaaaaaa, mas nada de maquiagem.
Eu não sabia nem mesmo passar batom numa pessoa que minha mão já tremia. Imagina, então, fazer uma maquiagem completa? Antes de entrar na loja havíamos passado por um treinamento rápido de maquiagem, mas, confesso, que não havia aprendido nada porque tinha sido muito rápido, e eu nunca na minha vida pensava que teria de fazer uma maquiagem sozinho.
]Como eu não gostava de vender maquiagem e não entendia do assunto, sempre que entrava um cliente com esse foco eu já direcionava para uma das meninas. Teresa, ao contrário de mim, era especialista nesta área.
Só que o tiro saiu novamente pela culatra. Era uma sexta-feira, cerca de 19 horas. Somente Teresa e eu estávamos trabalhando naquele turno. Ela havia saído para jantar. Eis que entra na loja uma brasileira toda sorridente dizendo que dentro de uma hora teria uma festa super importante e que ela gostaria de fazer a maquiagem conosco porque haviam falado muito bem dos nossos produtos. Ela queria experimentá-los e se gostasse ia levar a linha completa.
Eu queria um buraco para me enterrar dentro. Teresa havia acabado de sair e ela tinha deixado o celular carregando na loja. Eu não tinha como pedir para que ela voltasse e me salvasse daquela fria, e por outro lado, eu também corria o risco de estar sendo testado por uma cliente surpresa e toda minha reputação de ótimo gerente cair por terra, pois não cairia bem eu enquanto gerente não saber as coisas básicas de maquiagem da minha loja.
Não havia escapatória! Era eu ou eu! Não tinha um plano B. Naquela hora eu queria ter o poder de convocar realmente os espíritos, mas ia trazer de duas almas vivas: o meu Fer, e Fernando Torquato, que dava consultoria para a rede.
Como eu não tinha esse poder, ia ter que improvisar uma personagem do melhor maquiador do mundo. Então, deitei aquela mulher na cadeira e disse que ela passaria pela melhor transformação de sua vida. Pobre coitada! Mal ela imaginava que ao final da minha maquiagem ela seria a primeira colocada disparada num show de horrores. Numa comparação simplista com uma personagem de novelas, ela seria perfeitamente confundida com a Germana (Viviane Pasmanter), em “Novo Mundo”.
Para ganhar tempo com a esperança de que Teresa voltasse antes do horário para pegar seu celular, dei a desculpa de que era necessário fazer uma massagem facial para o produto deslizar melhor e que todo procedimento seria com os seus olhos vendados para que ela tivesse surpresa no final. Tudooo mentira! Não existia isso, mas eu precisava ganhar tempo.
Eu havia inventado aquela massagem de última hora para distraí-la, mas vi que ela foi ficando nervosa porque queria que eu começasse logo porque ainda tinha que ir trocar de roupa na sua casa.
Sem outra alternativa e com a pressão da mulher comecei a passar uma base. Ela tinha algumas marcas de acne e a base não era da cor da sua pele e foi ficando impregnada no seu rosto. Era como um queijo suíço sendo preenchido. Pobre coitada! Era hora de passar batom. No teatro, quando tinha que fazer maquiagem recorria aos outros atores porque realmente não era minha praia.
Ela tinha os lábios finos, mas eu passei tanto batom que parecia que ela havia sido picada por uma abelha. Faltava a sombra. Como era uma festa à noite, eu sempre pensava em brilho. Então, fui misturando as cores. Havia chegado naquela semana um produto que dava um novo formato para as sobrancelhas, e como ela quase não tinha eu falei que ia desenhar a melhor sobrancelha de sua vida porque havia estudado pigmentação.
Nossa senhora, cada vez mais eu ia piorando a cara daquela pobre moça. Ela estava ficando horrível, assustadora e eu não sabia o que fazer. Já totalmente sem paciência com minha enrolação e angustiada pelo horário, ela disse que queria um espelho para se olhar. O que fazer??
Se eu desse o espelho ela ia me matar, e se eu não desse, ela também me fuzilaria porque eu a faria perder a festa porque ninguém em sã consciência sairia de casa para uma festa com aquela maquiagem. Ela estava uma verdadeira bruxa.
Sem outra opção fui dizendo que caso ela não gostasse das tonalidades poderíamos trocar rapidamente. Quando ela ia pegar o espelho vi que Teresa estava entrando na loja. Respirei fundo e gritei alto: “NÃO OLHA AINDA!”.

Corri tampar seu olho de novo e lhe expliquei que nossa especialista em maquiagem havia acabado de chegar e daria o retoque final com um produto surpresa.
Só pelo meu olhar de pânico Teresa já sabia o que havia acontecido. A princípio, ela levou um susto, colocou as mãos na cabeça e quis chorar. Acho que pensou: “Nem um milagre salvará esse rosto hoje”. Mas ela tinha o dom. Foi enrolando a pobre moça e em 10 minutos, a bruxa cedia lugar à uma princesa (diante das devidas circunstâncias podia ser considerada até uma rainha).
A felicidade que aquela moça saiu da loja era contagiante. Primeiro, porque havia ficado realmente bela com a maquiagem de Teresa; e segundo, porque ela disse que nunca havia sido tão bem tratada em uma maquiagem e que eu até tinha feito uma massagem relaxante no seu rosto. No final, levou todo o kit de maquiagem oferecido por Teresa.

Não tem um ditado que diz: “Deus é brasileiro”? Pois meu Deus não havia me abandonado e fui salvo na boca do pênalti. Mais um perrengue pra minha conta e esse foi tenso do começo ao fim, mas com desfecho feliz. Esse brasileirinho aqui cai, mas levanta como todo bom brasileiro. E que venham os próximos perrengues e aventuras na terra de Camões.

VEM AÍ : Meu primeiro aniversário fora do país, mudança brusca de casa em sacos de lixo, os doces de madrugada, uma “amizade de vida”, chamada Teresa e uma viagem inesquecível por uma paisagem de Portugal

