Na era dos podcasts, os roteiristas Bruno Block e Filippo Cordeiro se tornaram referência no mercado audiovisual brasileiro após criarem o “Primeiro Tratamento” em 2017, um dos podcasts mais acessados por quem sonha e vive o mundo da ficção


Eles se conheceram em 2017 por intermédio de suas namoradas que, na época, trabalhavam juntas em uma área totalmente distante do audiovisual. Começava a nascer ali uma amizade que pouco a pouco foi se fortalecendo pelas afinidades que tinham, principalmente na área do roteiro. Ambos tinham o desejo de produzir algo diferente neste segmento e foi assim que nasceu o “Primeiro Tratamento”, um dos podcasts mais conceituados no mercado brasileiro. De lá para cá, Filippo Cordeiro e Bruno Block acumularam boas histórias. O acervo já conta com mais de 250 entrevistas com diferentes personalidades do mercado audiovisual, dentre elas, o prestigiado e renomado cineasta Kléber Mendonça Filho, diretor de grandes sucessos como Bacurau (2019), Aquarius (2016), O Som ao Redor (2013), dentre outros . Um dos sonhos da dupla de roteiristas era ter entrevistado a escritora Fernanda Young (falecida em 2019), e autora de grandes sucessos na TV, como a série “Os Normais” e “Sai de Baixo” (ambos na TV Globo). E a dinâmica do programa com entrevistas exclusivas já ultrapassou a marca de meio milhão de “plays”. Se antes, o podcast não era tão difundido ou conhecido do grande público, hoje, ele se tornou uma realidade. Em linhas gerais, ele é um arquivo em formato de áudio, quase como um programa de rádio na internet. Ele funciona sob demanda, que você pode ouvir o que quiser, quanto quiser e na hora que quiser. Para se ter uma ideia do alcance e da influência deles no cenário brasileiro, no ano passado, durante a campanha política para a Presidência da República, os dois principais candidatos na disputa, Lula e Bolsonaro, participaram de alguns dos principais podcasts do Brasil batendo recorde de audiência com suas respectivas entrevistas. E foi pensando nessa importância dele como meio de comunicação de massa no Brasil, que convidei os idealizadores do “Primeiro Tratamento” para essa entrevista especial para o blog “Desejo de Viver”. Hoje, Bruno e Filippo saem literalmente do papel de entrevistadores para assumirem a função de entrevistados, e falam sobre o mercado brasileiro de dramaturgia, da greve dos roteiristas nos EUA, sobre o boom da carreira de roteirista, os próximos projetos e sobre as principais entrevistas já realizadas.
Que fatores vocês acreditam que influenciaram para esse boom do podcast no mercado brasileiro, pois até mesmo na última campanha presidencial ele foi utilizado? O que fez o podcast virar uma febre e paixão nacional?
Em primeiro lugar, o podcast é um tipo de conteúdo mais prático e acessível de produzir, que não depende necessariamente de grandes investimentos. Isso certamente fez com que tivéssemos uma grande oferta de podcasts no mercado. Também tem aí o aspecto mais “anárquico” da mídia, que permite formatos mais livres, de durações e propostas variadas, que acaba fugindo das limitações impostas pela TV, por exemplo. Acho que o público respondeu muito bem à essa liberdade dos formatos. Há aí também uma razão um pouco mais subjetiva: sentimos que as pessoas gostam e precisam cada vez mais de companhia. Talvez a própria pandemia tenha colaborado com isso, fazendo com que as pessoas passem mais tempo dentro de casa e até trabalhando de home office. Acreditamos que o podcast ajude um pouco nesse sentido.
O rádio sempre foi um meio de comunicação global. Dele, vieram as radionovelas que geraram as telenovelas. Sempre tivemos entrevistas em rádio, mas elas ganharam essa roupagem de podcast e se modernizaram com exibição do conteúdo em vídeo também. Vocês acreditam que o fato de ter agregado o visual também ajudou a pegar esse público de TV ou o ouvinte fiel de podscat não importa com a imagem, mas sim o conteúdo?
Sim, o conteúdo em vídeo certamente ajuda a atrair o público mais “tradicional”, acostumado com a TV, porque a experiência acaba ficando bem parecida. Acreditamos, inclusive, que grande parte desse público nem tem o costume de ouvir conteúdo só de áudio. Ao mesmo tempo, existe o ouvinte mais “clássico” de podcast, que não está nem aí para o vídeo. Ele já está acostumado a ouvir só o áudio e ele muitas vezes deixa o podcast rolando enquanto executa outras tarefas do seu dia. O conteúdo de áudio acaba sendo perfeito para esse tipo de situação.
Como é a dinâmica do Primeiro Tratamento? Vocês têm uma reunião semanal de pauta, como fazem as entrevistas com os convidados quando não podem ser presencial? Como acompanham e medem a audiência? E como se veem sendo uma referência de podcast?
Não temos exatamente uma reunião semanal de pauta, mas estamos sempre conversando, praticamente todo dia, por mensagens, sobre o podcast, futuros convidados, iniciativas etc. Todas as nossas entrevistas são e sempre foram feitas de forma remota, somente nos festivais (ROTA, FRAPA, Serie_Lab) que fazemos uma versão ao vivo e presencial, então, a gente já se acostumou com essa dinâmica e já entendemos como fazer o papo funcionar da melhor forma dentro dessa limitação. Números de podcast são difíceis de se ter uma métrica exata, por conta do modelo de feed que pode ser acessado em diferentes plataformas. Portanto, a gente consegue cruzar algumas informações como por exemplo os dados do Spotify e de um medidor chamado Blubrry. Sabemos, por exemplo, que estamos em torno de meio milhão de “plays” e conseguimos identificar quais episódios são mais escutados. Quanto à questão da referência, somos um podcast de nicho, voltado para roteiro audiovisual, então nossas conversas acabam sendo sempre mais técnicas e específicas, o que acaba tornando o nosso alcance de público um tanto restrito. Porém, dentro do audiovisual, temos cada vez mais a sensação de que muita gente legal e talentosa nos escuta e acompanha o nosso trabalho, especialmente roteiristas mais iniciantes, que sempre nos relatam que aprendem muito sobre a profissão através das nossas conversas.

Apesar de ter uma linha focada no audiovisual, vocês têm intenção de ampliar o leque de entrevistas com outros temas, assuntos ou convidados especiais?
Nosso objetivo com o Primeiro Tratamento sempre será falar sobre roteiro. A maioria dos nossos convidados é roteirista, mas é claro que também conversamos com diretores, produtores e atores, tentando trazer a perspectiva de outros profissionais sobre roteiro. Estamos tendo o privilégio também de começar a conversar com roteiristas internacionais, então, estamos animados com o futuro.
De todas as entrevistas já realizadas alguma que surpreendeu mais? Quantas já foram realizadas até o momento? Algum entrevistado que é um sonho de consumo para ambos ?
É difícil apontar alguma entrevista específica que surpreendeu mais, mas o que podemos dizer é que toda hora nos surpreendemos com os rumos das conversas. Às vezes, por exemplo, um convidado costuma trabalhar com tipos de projetos que não necessariamente nos interessam tanto como público, mas o papo acaba sendo muito rico, cheio de dicas interessantes sobre processo criativo e formas de se pensar um projeto. Já foram ao ar 270 entrevistas. Isso sem contar, é claro, com alguns especiais que fizemos ao longo dos anos. O Kléber Mendonça Filho, definitivamente, está na nossa lista. A Fernanda Young era um grande sonho, mas infelizmente não conseguimos conversar com ela.


Como vocês avaliam o atual momento da nossa dramaturgia? A TV sempre foi líder incontestável de audiência, mas nos últimos anos o streaming vem roubando público e, recentemente, começou a atacar também na produção de telenovelas (que sempre foi o carro chefe da TV). Como vocês veem isso?
O streaming certamente entrou no nosso mercado de forma agressiva nos últimos anos e foi construindo um público expressivo, mas ainda é inegável o poder de uma TV como a Globo, que tem muita tradição, know how e experiência de mercado aqui no Brasil, coisa que essas plataformas ainda não têm, pois estão tentando entender o nosso mercado e se organizar internamente, algo que ainda pode demorar um tempo razoável.
O nosso cinema nacional ficou marcado por seguir uma linha de comédia e de histórias de violência urbana. Há muitos anos, não temos um filme concorrendo a um Oscar ou a outros prêmios internacionais de destaque. Em contrapartida, nossa teledramaturgia acumulou vários EMMYS. O que falta para o nosso cinema também voltar a ser destaque internacional e como promover o nosso cinema nacional dentro do nosso país?
O sucesso do cinema brasileiro internacionalmente certamente depende de uma maior oferta de editais e mecanismos de incentivo, algo que não foi nada bom nos últimos anos. Ainda assim, existe uma certa obsessão com o Oscar que talvez seja exagerada. Existem diversos filmes nacionais que competem e são selecionados em festivais muito importantes ao redor do mundo como Cannes. As premiações têm certas curadorias e até normas e etapas para selecionarem filmes. Não estar no Oscar não significa necessariamente não fazer bons filmes ou estar atrás de outros países estrangeiros que aparecem mais frequentemente. Há um complexo trâmite que não envolve só a obra, que passa por campanha de marketing, lobby e até como o filme comunica com o mercado internacional, principalmente, o americano. Portanto, muitas vezes que não estamos no Oscar, quem perde é o Oscar! De qualquer forma, a tendência é que esse cenário melhore no futuro próximo. Quanto a levar o espectador a consumir nossas próprias obras cinematográficas, o momento certamente é complicado. Há muito conteúdo sendo produzido ao mesmo tempo, em tudo quanto é lugar, então, a disputa por atenção é muito grande… É difícil propor uma solução, mas talvez seria interessante ver o mercado assumindo mais riscos na escolha de projetos para produzir, fugindo de certos clichês de gêneros e temáticas batidas.
Como vocês avaliam essa greve dos roteiristas nos EUA? Acreditam que isso também pode respingar no Brasil e ajudar na valorização do roteirista?
A greve dos roteiristas nos EUA é com certeza muito importante, pois é uma batalha pelos direitos, pela remuneração e principalmente pela valorização do trabalho de roteirista, uma função que vem sendo cada vez mais explorada e mal tratada nos últimos anos. Estamos muito curiosos para saber o que vai acontecer no futuro próximo. Como quase tudo que acontece nos Estados Unidos acaba chegando aqui com certo delay, acreditamos que os resultados de lá podem impactar a realidade do nosso mercado, mas ainda é difícil prever o tamanho real desse impacto.
Há poucos anos, muita gente nem comentava sobre os créditos de um roteirista, ou seja, uma novela ou um filme nunca era lembrado por causa do seu autor. No entanto, isso mudou, e hoje muitos são reconhecidos do público. Com isso, a profissão passou a ser mais disputada e também tivemos um aumento de cursos, de especializações e de pessoas que se “descobriram” autores. Vocês acreditam que todos podem se desenvolver como autores ou o talento é uma coisa nata?
A busca por créditos e pelo reconhecimento dos roteiristas ainda segue sendo uma questão delicada. É só ver, por exemplo, as notícias que saem sobre projetos nacionais que estão sendo lançados no mercado, e em muitos casos, você nem encontra o nome dos roteiristas responsáveis pelo projeto na matéria. Mas, certamente, esse cenário já foi bem pior. Um dos objetivos do Primeiro Tratamento é justamente ajudar a dar protagonismo aos roteiristas, fornecendo um espaço que os coloque em destaque. Acreditamos que, como em qualquer profissão, o profissional precisa ter algum tipo de sensibilidade favorável para desempenhar sua função. Então, consideramos importante sim ter algum tipo de pré-disposição e interesse pelo assunto e aí entra o estudo para potencializar esse talento.
Queria que cada um falasse um pouco sobre o passado (infância, adolescência, formação), e quando surgiu esse despertar para as artes? Quando decidiram que iam ser roteiristas?
Bruno: Durante toda a minha infância e adolescência, tive interesse pelo audiovisual, especialmente pela comédia. Fui o tipo de jovem criado com as tradicionais sitcoms americanas e assistia tudo que passava na TV. Foi inclusive esse tipo de conteúdo, especialmente “Seinfeld”, que me deu vontade de ser roteirista. Na faculdade, decidi cursar comunicação, primeiro com foco em jornalismo, mas acabei me formando em publicidade, mas o que eu queria mesmo era ser roteirista de ficção, caminho que comecei a percorrer apenas após a faculdade, buscando cursos mais focados na área, na Escola de Cinema Darcy Ribeiro e depois na Roteiraria.
Filippo: Desde que me lembro, minha mãe não só me apresentou filmes como me levou ao cinema, além disso, também criança me habituei a ler desde aventuras bobas até com o passar do tempo todo tipo de ficção. Quando escolhi a faculdade sabia que queria trabalhar com escrita e fiquei entre comunicação e direito. Acabei começando comunicação pensando em publicidade e migrando para direito mais ou menos na mesma época que passei a me interessar por roteiro, até então um sonho distante, quase uma curiosidade. Depois de alguns anos sofrendo no escritório e no fórum resolvi tirar férias e fazer uma oficina de roteiro indicada por um amigo que trabalhava na Globo. Nunca mais voltei atrás.
Hoje, além do podcast, vocês trabalham em projetos paralelos? Tem intenção de desenvolver um projeto de roteiro juntos?
Bruno: Sim, além do podcast, nós dois temos trabalhos na área do roteiro. Meu foco é mais em projetos de comédia. Quanto a desenvolver um projeto de roteiro juntos, pode acontecer no futuro, mas a nossa convivência por causa do Primeiro Tratamento já é muito intensa no momento, o que dificulta pensarmos em outros projetos juntos.
Filippo: Conforme o Bruno comentou, já passamos boa parte do tempo que temos juntos dedicados ao podcast. Por isso, fora das questões do Primeiro Tratamento, eu só quero encontrá-lo na praia ou num bar. Quanto a projetos paralelos, tenho alguns pessoais que estão circulando no mercado. Porém, hoje em dia, trabalho com desenvolvimento em uma produtora. Atualmente, além das funções do departamento, estou escrevendo um longa para rodar ano que vem.
Queria também que falassem de suas trajetórias como roteiristas. O que já fizeram na área e quais trabalhos destacam?
Bruno: Tenho experiência em projetos de TV, cinema e podcast. Para o cinema, fui roteirista e produtor do longa “B.O.”, indicado ao prêmio ABRA na categoria “melhor roteiro de longa de comédia”, premiado no Los Angeles Brazilian Film Festival e no Festival FICA.VC. Também fui roteirista do longa “Tamo Junto”, exibido no Festival de Cinema de Gramado de 2016. Para TV, fui roteirista da série “Bugados”, do Gloob. Também fui cocriador e roteirista da série “Vendemos Cadeiras”, exibida no Multishow. Recentemente, desenvolvi um projeto de podcast, que mistura ficção com não ficção para a produtora B9, em parceria com a Audible.
Filippo: Já escrevi para alguns canais como Multishow, Gloob, GNT, fiz especiais para Youtube, fui autor e trabalhei na produção de um curta que foi selecionado para diversos festivais ao redor do mundo. Atualmente, estou há dois anos trabalhando com desenvolvimento, acompanhando salas de roteiro, fazendo análise de projetos e escrevendo não só projetos de ficção e não-ficção como roteiros de longa pela produtora.
O que estão vendo atualmente? Séries, filmes, novelas? (nacionais e internacionais). E o que recomendam?
Bruno: Ultimamente, fiquei bastante impressionado com a série “Os Outros”, do Globoplay, que eu já considero uma das melhores séries nacionais dos últimos anos. Também gostei muito da série de comédia “The Other Two”, que faz uma sátira incrível de Hollywood. As últimas temporadas de “Succession” e “The Marvelous Mrs Maisel” também, é claro, foram muito marcantes.
Filippo: Também assisti “Os Outros” recentemente e acho uma das melhores séries do ano. Por conta do trabalho tenho visto muitos filmes de terror, de Suspiria a Titane passando por Motorrad, Last Night in Soho e Boa Noite, Mamãe (que aliás recomento o original!).
Dos trabalhos já produzidos na TV e no cinema, qual seria aquele que vocês gostariam de ter escrito porque são muito fãs?
Bruno: Gostaria muito de ter escrito a série “30 Rock”. É o tipo de projeto incrível de assistir que deve ter sido também incrível de escrever. Adoro escrever sátiras.
Filippo: Recentemente, “Os Outros”, as séries “Mandrake”, “Desalma”. De longas, “Um Crime Ferpecto”, “Hereditário”, “Os Suspeitos” (tanto o do mala do Villeneuve e do Aaron Guzikowski quanto o do Bryan Singer e Christopher McQuarrie).

