Diário de um imigrante- Cap 20

Com certeza você já ouviu o velho ditado: “tá na chuva é pra se molhar”. E quando você é imigrante em um país estrangeiro toda experiência passa a ser válida. Eu posso garantir que tive experiências muito inusitadas e que eu nunca havia sonhado em tê-las. A pior e mais asquerosa, sem dúvida, foi na minha jornada espanhola (mas isso contarei nos capítulos da Espanha), mas também tive uma revoltante na minha segunda temporada na Irlanda, em 2016. (contarei ambas nos capítulos da Espanha e Irlanda, parte 2). Nos EUA, eu fui parar num petshop de uma brasileira, mas ela não queria que eu usasse luvas ou proteção para lavar os cães, muitos deles, agressivos. Eu morria de medo de ser mordido. Apesar de amar os cachorros, eu não estava acostumado, e se houvesse um acidente mais grave quem pagaria o prejuízo?
Mesmo com a cara feia dela eu insistia em usar as luvas. Não havia dinheiro nenhum no mundo que pagasse minha segurança e saúde. Fiquei ali quase um mês, mas pedi pra sair. Além da insegurança, a jornada era cruel. Tinha que trabalhar oito horas de pé e ela deixava parar 10 minutos para comer um lanche. Quando aleguei que o certo seria uma hora de descanso, ela alegou que eu não estava no Brasil e que a rotina americana era aquela, ou seja, pegar ou largar. Infelizmente, era mais uma pessoa corrompida pelo sistema americano onde tempo é business, e as pessoas não querem saber de parar nem para comer. Isso me deixava e ainda me deixa assustado.



Uma das cenas mais corriqueiras que eu sempre via e me assustava eram as pessoas comendo de tudo, literalmente, tudo nos trens e nos metrôs. De frango assado à pizza, passando por hot dog, hamburguer, salgadinhos e muito refrigerante. Talvez por isso, as taxas de obesidade sempre foram uma preocupação na sociedade, já que a rotina estressante leva à ingestão de comida de baixa qualidade e falta de exercícios físicos. A preocupação das autoridades públicas norte- americanas com o aumento da obesidade é uma realidade. Um relatório divulgado em 2021, apontava que a obesidade entre adultos dos EUA é de 42,4% (aumentou 26% desde 2008). Foi a primeira vez que a taxa nacional ultrapassou a marca de 40% e mais uma evidência da crise de obesidade do país. A prevalência de obesidade infantil também está aumentando. Dados mais recentes mostram que 19,3% dos jovens americanos, com idades entre 2 e 19 anos, têm obesidade. Em meados da década de 1970, 5,5% dos jovens tinham obesidade.

Nunca vou me esquecer de uma moça no trem. Eu ia para Manhatam e ela sentou-se na minha frente. Não devia ter mais de 20 anos. Apesar de muito jovem o aspecto era de uma mulher cansada pelo trabalho. Era 11h da manhã. Ela devia estar indo para o trabalho. Abriu a marmita que levava de casa e começou a comer loucamente. Havia arroz e cochas de frango assado. Ela comia vorazmente aquelas cochas como se fossem a última refeição de sua vida. Era triste de ver o desespero para acabar a refeição antes de chegar na estação. Possivelmente, era o único momento que ela teria para comer algo durante todo o dia e necessitava daquilo para se manter de pé, e seu trabalho tinha cara de ser bem pesado. Mas isso não se resumia somente às pessoas de baixa renda, pois até mesmo empresários que tomavam o trem comigo abriam suas mochilas e sacavam seus sanduiches e pizzas. Eram raros os que optavam pelas saladas prontas, que eram muito mais práticas e saudáveis. O que dizer, então, dos adolescentes? A variedade de fast food a preços irrisórios se comparados aos praticados no Brasil favorecia o consumo de doces, lanches e refrigerantes.
E, ironicamente, comecei a ter contato diário com festas e comidas das mais diferentes nacionalidades e pude presenciar como era a alimentação nas outras culturas. Graças à minha amiga Claudineia (Néia), que já trabalhava há anos como palhaça, eu tive a oportunidade de exercitar o meu lado animador de festas, afinal de contas, além de jornalista e roteirista, eu também era ator. E de todas as experiências que tive essa foi a que eu mais gostei porque era um universo que eu não estava acostumado. Como ator, já havia feito diferentes personagens em peças teatrais, inclusive um delegado mau caráter num texto belíssimo de Jorge Andrade: “Pedreira das Almas”, um italianinho apaixonado na poética e sensível “A Rosa Tatuada”, de Tenesse Willians, e um ministro gay no infantil “Bobo da Corte”.


Mas trabalhar com personagens animados era uma novidade e só de ver a alegria das crianças eu já ficava emocionado. Era impressionante como elas se encantavam por aquela magia, e os adultos acabavam entrando na brincadeira também. E isso era independente da cultura. Fui a festas mexicanas, cubanas, americanas, brasileiras, italianas, dentre outras nacionalidades, e criança é criança em qualquer lugar do mundo, e se você tem uma alma infantil não tem como não entrar no jogo de encantamento e magia. Néia me pagava por horas para ficar vestido com diferentes fantasias (o dono da festa escolhia e ela alugava o traje). Então, fui a Minie, a Dora, o Mickey, e outras personagens. Minha função era ajudá-la com a animação. Em média, cada festa durava três horas.
O ponto ruim é que muitas fantasias impediam a respiração e pesavam muito, e durante a festa não tinha como se libertar dos trajes, pois não podia estragar a magia das crianças. Então, muitas vezes, eram três horas seguidas de puro desafio. De tanto pular e suar, eu podia comer todas as guloseimas das festas que nunca ia engordar.



Sem NENHUMA DÚVIDA, eu torcia para trabalhar nas festas de brasileiros. Somos conhecidos pela fartura e animação, e nossas festas são sempre as melhores nestes quesitos, a começar pelo ramo da decoração das mesas, passando pela comida e pelos docinhos. Haviam brasileiros que se organizavam durante um ano para fazer a melhor festa para os seus filhos e isso era seguido à risca. Muitos não haviam tido nada semelhante no passado, mas não abriam mão de oferecer esse presente aos filhos. Tive a oportunidade de ir a grandes festas. O melhor de tudo era quando nos ofereciam comida. Era o momento que eu mais amava e que tirava literalmente a barriga da miséria.
Se durante a semana eu mantinha uma dieta regrada, nos finais de semana de evento eu me permitia comer tudo o que me ofereciam. E nos EUA, o mercado de entretenimento é levado a sério, por isso, muitas pessoas acabam indo para essa área. Conheci muitos brasileiros que viviam apenas disso: faziam bolos, salgados, decoração de festas. A infinidade de produtos a preços muito acessíveis facilitava bastante a entrada neste mercado. Alguns destes brasileiros depois se transformaram em meus amigos e entraram numa série especial que fiz chamada sonho americano (contarei detalhes deste projeto nas próximas edições).
Nos primeiros dias nos EUA, minha rotina se dividia em ir à escola (quando havia aulas), e quando a neve dava uma trégua. Depois de quase um mês vivendo ali eu sentia necessidade de fazer aquilo que eu mais amava: sair às ruas, descobrir coisas interessantes e depois transformá-las em histórias. Claro que minha mente de jornalista e roteirista estavam intimamente ligados e já haviam decidido: algum projeto novo sairia dali. Eu ainda não sabia se seria um novo roteiro ou então um trabalho jornalístico. No final das contas, acabou prevalecendo a veia de repórter e nasceu minha primeira série internacional, que foi uma das coisas que eu mais amei fazer como repórter. E depois dela ainda viram outras duas nos outros países onde vivi: sonho italiano e sonho espanhol.
POUCO A POUCO A NEVE FOI DANDO UMA TRÉGUA E O SOL VOLTOU A BRILHAR
Depois de muitos dias literalmente enclausurado dentro de casa por causa da neve, o tempo melhorou, o sol voltou a brilhar forte e isso fez com que a neve cedesse, mas antes disso eu brinquei muito na neve, fiz todos os bonecos que eu imaginava fazer, e até tinha pensado em fazer algum freelancer como motorista daqueles carrinhos para desbloquear as vias. Conheci um brasileiro que montou uma empresa graças ao seu trabalho como “removedor de neve”. Era uma profissão que eu desconhecia totalmente, mas muito lucrativa porque ninguém queria fazer e as pessoas pagavam para tirar a neve acumulada de frente de suas casas ou ajudar na remoção de veículos.







TEM QUE TER PERRENGUE SENÃO ESSE NÃO SERIA O MEU DIÁRIO
Eu necessitava sair às ruas, ver gente, arriscar o meu inglês. Eu necessitava de sol, de vida. Já bastava de tanta neve. Então, no primeiro dia sem neve sair pra conhecer melhor a cidade de Mount Vernon e o bairro onde eu morava. Estava com meu celular e sem conhecer absolutamente nada sobre os lugares comecei a fotografar as ruas, as casas sem muro que me chamavam muito a atenção (algo impensável e impraticável no Brasil), até que cheguei num grande edifício. Achei bonito e comecei a fotografá-lo. Eu havia subido uma escadaria e estava próximo à recepção quando vi que haviam se aproximado um guarda fardado e uma mulher com a cara fechada. Eles falavam loucamente comigo e eu não entendia absolutamente nada do que estavam falando porque realmente falavam muito rápido, com várias gírias e acento carregado. Eles apontavam para o meu celular e pelo que entendi queriam saber o que eu estava fazendo ali e qual a razão de estar fotografando o local. Tentei argumentar que era um estudante e que havia acabado de chegar, mas de nada adiantava. Eles estavam muito desconfiados e alterados. O policial tentou, inclusive, tomar meu celular, mas foi contido pela senhora que devia ser diretora do local. Depois de mais de 15 minutos de conversação (da parte deles, diga-se de passagem), eles me “liberaram” dizendo “Go, go, go”. Eu não pensei duas vezes e saí sem olhar para trás. Depois que fui descobrir que ali era uma escola e que eles tinham pavor de ataques terroristas ou casos de pedofilia e que qualquer foto necessitava de uma autorização prévia, pois eu podia acabar fotografando um menor de idade. Esse episódio serviu para que eu ficasse mais esperto.

A TRISTE REALIDADE DO SONHO AMERICANO FEZ MAIS UMA VÍTIMA
Essa semana, infelizmente, tivemos mais uma brasileira que morreu ao tentar atravessar ilegalmente a fronteira entre o México e os EUA. A minera Márcia Cristina Dutra, de 36 anos, era natural de Caratinga, no leste de Minas Gerai, tinha asma e faleceu após passar mal durante o trajeto. O corpo de Márcia foi encontrado por socorristas da Califórnia, já em solo norte-americano. Segundo informações da família passadas ao site de notícias G1, pessoas que tentavam a travessia ao lado da brasileira informaram que ela não conseguiu seguir viagem após passar mal. Segundo o relato de familiares ouvidos pela reportagem, eles disseram que ela não sabia da existência de longos trechos de caminhada durante o trajeto para atravessar a fronteira entre os dois países.
O Consulado do Brasil nos Estados Unidos informou que Márcia parou no meio do caminho, sentou e desmaiou. Márcia trabalhava na parte administrativa de um laboratório em Caratinga. Ela deixou uma filha de 11 anos. Seu irmão, Marcos Dutra, havia se mudado para os Estados Unidos recentemente e esperava encontrar a irmã no território norte-americano.


A novela “América”, de Gloria Perez, tinha como história principal o sonho americano por meio da personagem Sol (vivida pela atriz Deborah Secco). Na trama, depois de ter o visto de turismo americano recusado várias vezes, ela entrava num esquema que levava brasileiros ilegalmente para o exterior. No entanto, para burlar a polícia se escondia dentro do painel de um carro e acabava sendo detida pela polícia. As estratégias utilizadas pelos coiotes da trama não foram invenções da autora, pois ela coletou as informações junto aos registros policiais americanos.
Para essa cena em questão, foi utilizada como referência uma fotografia que o próprio Consulado dos Estados Unidos forneceu à escritora. A foto mostrava uma mulher presa em flagrante na mesma situação de Sol: confinada no painel de um automóvel. Na época, a atriz deu entrevistas apontando que só acreditou que pessoas faziam aquilo após ver as imagens . “Se me dissessem que tem gente que atravessa a fronteira nessas condições, eu não acreditaria. Mas eu vi a foto e fiquei muito impressionada. Foi muito angustiante ficar ali. É quente, apertado, desconfortável… É uma situação surreal, inimaginável. E eu ainda tive que ficar ali com o carro em movimento, o que dá uma agonia muito maior. Ainda bem que só levou 15 minutos para gravar minha parte na cena”.
No site “carro de cena” eles detalharam como foi gravada a sequência que levou horas até o momento da gravação. Eles tiveram que adaptar o painel para abrigar um ser humano sem danificar o automóvel, abrir espaço lá dentro, esconder a fiação, dentre outras coisas. E o carro ainda teria que funcionar, pois ele apareceria em movimento na cena. Houve também uma preocupação especial com o conforto da atriz, forramos o painel com espuma por dentro, para que a Deborah não se machucasse.



