“Seja a mudança que você quer ver”, diz Lak Lobato, parafraseando um pensamento do ativista e líder indiano Mahatma Gandhi. Fotógrafa e criadora de conteúdo, Lak ficou surda em 1987, mas transformou a perda de sua audição em uma luta pela inclusão das pessoas surdas na sociedade e hoje é uma das principais ativistas do movimento no Brasil e no exterior

A vida da carioca Lak Lobato passou por uma transformação radical quando em 1987 ela despertou sem audição nenhuma. Até hoje, passados mais de 30 anos, não há um diagnóstico preciso do que desencadeou essa perda. Segundo ela, seu único caminho naquele momento era adaptar-se à uma nova condição de vida onde teria que enfrentar e superar novos desafios. Sua comunicação passou a ser a leitura labial, mas o tempo foi lhe mostrando que muito mais do que essa readaptação a um novo estilo de vida- a qual não estava acostumada a viver, que ela poderia usar sua experiência e seus novos aprendizados atuando diretamente na linha de frente e ajudando outras pessoas que são portadoras de deficiência auditiva no processo de inclusão. Atualmente, Lak vive em Madrid, é sócia do marido Eduardo Suarez em uma agência de conteúdo online voltada para a área de saúde auditiva, mas ressalta ter sofrido muito bullying no passado, fator que a levou a lutar por outras pessoas. “São 14 anos de atuação nesta área, mesmo assim, sigo fazendo trabalho de formiguinha porque pouca gente consegue entender que surdez não é sinônimo do uso de língua de sinais”, explica.
De acordo com o IBGE, existem mais de 10 milhões de surdos no Brasil. E hoje, 26 de setembro, quando se celebra o Dia Nacional do Surdo no Brasil, tenho o orgulho de trazer para o blog “Desejo de Viver,” uma entrevista especial e exclusiva com a Lak. Este projeto, por sinal, carrega no nome e tem como um dos lemas a bandeira da diversidade e da igualdade. A data de hoje foi escolhida por lembrar a inauguração da primeira escola para Surdos no país em 1857, com o nome de Instituto Nacional de Surdos Mudos do Rio de Janeiro, atual (INES-Instituto Nacional de Educação de Surdos).
Como e quando foi a descoberta da sua surdez?
LAK: Eu sou o que chamam de surda adquirida. Eu nasci com audição normal e um dia acordei sem audição nenhuma, mas provavelmente tenha sido alguma infecção. Como minha perda foi total, minha comunicação passou a ser pela leitura labial. E continuou sendo pela voz porque eu não desaprendi a falar, embora tenha adquirido “sotaque. Nunca fiz uso da língua de sinais.
Quais foram as principais barreiras, principalmente com relação à inclusão no Brasil porque sabemos que muitas escolas não estão preparadas para diferentes tipos de deficiência?
LAK: Sou surda oralizada. Não tive barreiras na escola porque já era alfabetizada quando perdi a audição. No meu caso, foram necessárias algumas pequenas adaptações porque ainda não se falava em inclusão. Hoje, eu sei que teria me beneficiado de algumas ferramentas de acessibilidade como material adaptado (textos complementares do conteúdo das aulas). No entanto, na época não se falava disso e, mesmo assim, eu me formei em primeiro lugar na escola. Por outro lado, no mercado de trabalho, não bastava simples interesse de me adaptar. Eu só consegui trabalhar quando a Lei de Cotas passou a ser fiscalizada, em 2004, porque antes disso eu nem conseguia ir a entrevistas. Eram marcadas por telefone, e como eu não conseguia atender, não aceitavam marcá-las comigo.
E com a entrada da Lei de Cotas você sente que essa situação mudou?
LAK: Apesar da Lei de Cotas garantir meu acesso ao mercado ainda enfrentei muitas barreiras, “puxadas de tapete”, implicância gratuita da parte dos colegas e o total desinteresse das empresas em promover gestão de carreira de profissionais com deficiência. Falam muito do despreparo das crianças e professores no trato com alunos com deficiência que esquecem que isso existe em todas as esferas da vida e o preconceito é o mesmo, inclusive, ele está presente no mundo corporativo.
Na infância e adolescência, qual o sonho que você tinha? Qual a profissão que você queria ter?
LAK: Eu sempre quis ser escritora, afinal, eu tenho o sobrenome Lobato, do grande escritor Monteiro Lobato, e meus pais são escritores. Mas eu quis ser advogada boa parte da minha adolescência. Desisti após ter passado no vestibular porque eu não sabia se uma pessoa com deficiência auditiva teria oportunidade de atuar na área. Me faltou referências. Sou fotógrafa publicitária de formação. Estudei fotografia na Escola Panamericana de Artes e publicidade na Universidade Anhembi Morumbi. Atuei alguns anos na área e acabei migrando para a área da criação de conteúdo.
Como e quando começou esse seu processo de ser palestrante e ativista pela diversidade? Que trabalhos você fez e destacaria como os mais importantes ou representativos? Você também escreveu livros?
LAK: Como expliquei, eu sofri muito preconceito no mercado de trabalho. Certa vez, começou a rolar um boicote ao meu trabalho porque a equipe inteira sentia rancor de ter uma pessoa com deficiência na equipe (agiam como seu tivesse roubado a vaga de alguém). E eu fiquei meses sem receber trabalho. Para me distrair, eu comecei a escrever um blog sobre surdez (desculpenaoouvi.com.br) porque estava havendo um movimento de blogs de pessoas com deficiência. Eu percebia que faltava alguém para falar dos surdos oralizados. Meu blog foi o primeiro com esse tema que virou quatro livros sobre surdez, oralidade e uso de tecnologias auditivas. Isso me levou a viajar pelas cinco regiões do Brasil, eu fiz duas TEDx Talks, dei mais de 80 palestras, estive em muitos programas de TV. São 14 anos de trabalho neste segmento.


O que é surdez oralizada e a diferença para a linguagem de sinais? Como funciona? Você ouve com usos de aparelhos?
LAK: Surdez e deficiência auditiva são sinônimos. Podem ser usados de maneira distinta, mas na prática se referem a pessoas com pouca ou nenhuma audição. Não existe diferença numa audiometria de um surdo que oraliza para a audiometria de um surdo que usa língua de sinais e é esse exame que determina se alguém tem deficiência auditiva.
Surdo que usa Libras é o surdo sinalizante. Geralmente é o surdo de nascença, com perda bastante acentuada, que não consegue desenvolver a língua oral (ou não se identificam com ela). Quando um surdo fala oralmente e usa língua de sinais, é um surdo bilingue. O surdo oralizado é aquele que fala oralmente, ou seja, que oraliza, que usa a voz. Ele tem a língua oficial do país em que vive como a sua língua materna. Pode ser uma pessoa que, como eu, perdeu a audição após aprender a falar ou pode ser alguém que nasceu surdo e obteve sucesso na reabilitação auditiva e na aquisição da linguagem oral, boa parte fazendo uso de tecnologias auditivas.
Hoje, eu ouço através do implante coclear, que é uma tecnologia bastante avançada, inserida parcialmente por cirurgia dentro do ouvido, que cria audição de forma artificial para uma pessoa que não se beneficia com a simples ampliação do volume dos sons (que é o que o aparelho auditivo tradicional faz). E sim, eu tenho o melhor resultado possível com ele.
“No Ritmo do Coração (CODA) venceu o Oscar em 2022 e falava sobre a diversidade e uma família de pessoas surdas. Você acredita que a ficção tem esse poder de ajudar na difusão do tema na sociedade? Que outros filmes ou personagens, trabalhos na TV você destacaria por terem incluído a surdez como tema?
LAK: Esse filme não fala de diversidade surda. Ele foca no surdo que usa língua de sinais e vive na cultura surda. Em parte, é importante divulgar essa realidade para a sociedade que nem imagina que é perfeitamente possível viver sem audição, que não impossibilita alguém de casar, ter uma família, trabalhar e garantir seu sustento, ter amigos, viver uma vida plena. Que a língua de sinais pode ser sim a base da comunicação de um surdo, mas que se o resto da sociedade não aprende, eles acabam ficando restritos a uma comunidade de falantes da língua, por isso, é importante a língua de sinais ser melhor divulgada e mais aprendida socialmente, não restrita aos surdos.
Mas, por outro lado, é quase sempre a única realidade que a mídia mostra, então, acaba reforçando a ideia de que a surdez é sempre assim: total, sem benefício com uso de tecnologias auditivas, sem afinidade com a oralidade, que vive apenas entre os seus. Eu gostaria muito que outras realidades da surdez também fossem mostradas e com mais frequência. A série Sex Education, do Netflix, acabou de estrear sua quarta e última temporada, com uma personagem surda oralizada, que faz um pouco de leitura labial, usa implante coclear (a mesma tecnologia que eu), tem seu sotaque de surda. Esse tipo de diversidade precisa ser mostrada também. A Netflix é espetacular nesse sentido.
Ainda pegando carona no sucesso do filme, como foi o seu processo na família, com amigos, a adaptação à uma pessoa com deficiência?
LAK: Como eu não tive uma barreira tão grande de comunicação ninguém precisou exatamente se adaptar na forma de se comunicar comigo. Por um lado, isso foi bom, mas por outro, a maioria se esqueceu que eu era uma pessoa com deficiência e tive bem pouco apoio. Tanto que eu criei grupos de apoio e orientei muitas famílias que descobriram e seguem descobrindo a perda auditiva dos filhos e outros entes queridos. Ninguém deveria passar por esses momentos sozinho.
Hoje você mora em Madrid. Por que a decisão de morar na Espanha? Você já morou em outros países? O que você faz hoje na Espanha? Acredita que a Europa ou outros países estão mais avançados com relação à diversidade?
LAK: Eu mudei para a Espanha ano passado. Era um sonho antigo e eu precisava de novos ares. Sou o que chamam de nômade digital. Tenho uma agência de conteúdo online voltado para a área de saúde auditiva junto com meu marido. Somos ambos brasileiros, mas ele tem dupla cidadania porque é filho de espanhóis. Estamos juntos há 18 anos, nos conhecemos nas redes sociais. Ele é ouvinte e não tem deficiência auditiva.
Eu não sei como é a Europa em termos gerais, mas sei que a Espanha, de muitas formas é um país mais inclusivo que o Brasil. A gente vê pessoas com deficiência na rua todos os dias, porque os transportes públicos são acessíveis. Madrid, por exemplo, é uma cidade bastante acessível em termos gerais. E quando falo aqui que tenho deficiência auditiva não causa mais estranheza que dizer que sou brasileira, por exemplo.


Você é bastante atuante nas redes sociais. De que forma acredita que elas possam ajudar na discussão da diversidade e inclusão?
LAK: Eu uso principalmente o Instagram, embora ande apaixonada pelo Linkedin, pelas conexões verdadeiras que que a plataforma nos proporciona. Tenho tentado criar conteúdos especialmente para essa plataforma. Eu percebo que, em sua maioria, as pessoas são mais abertas ao debate e estão dispostas a ouvir (mesmo que nem sempre concordem).
Você ganhou um prêmio “Ouvir Bem” por ajudar na causa da surdez. Como foi essa conquista?
LAK: Isso foi uma grata surpresa que veio da Equipe de Implante Coclear do Hospital das Clinicas de São Paulo, que decidiu premiar personalidades que se engajavam na causa da surdez (focando no tratamento e uso de tecnologias para quem busca informações sobre isso). Meu trabalho foi premiado pela paixão e dedicação. É uma das maiores honras que já recebi.
Você enquanto uma pessoa surda, qual acredita que seria a maior conquista neste campo da surdez em termos de sociedade? O que está ruim e precisa ser melhorado em termos de acessibilidade e igualdade?
LAK: Eu acho bem bacana que a comunicação em sinais já seja reconhecida como Língua. Isso foi uma conquista muito importante.
Mas, pessoalmente, acho que a mais importante conquista foi a criação do implante coclear. É a única deficiência sensorial que consegue que a percepção natural seja reproduzida pela tecnologia de forma bastante similar. Imagine, eu passei 25 anos da minha vida sem poder ouvir música e hoje, eu tenho o prazer de ouvir de novo vozes de cantores que nem estão mais aqui. É uma conquista e tanto.
No entanto, a sociedade segue completamente desinformada sobre a diversidade surda e segue reduzindo surdez ao estereótipo do surdo total que se comunica somente pela língua de sinais e pensa que colocar intérprete de sinais é sinônimo de total acessibilidade para surdos. Nesse sentido, precisamos que a sociedade entenda que a surdez é plural e as formas de acessibilidade e inclusão devem ser igualmente plurais.
Hoje, se está passando um programa de TV, um filme, e não existe tradução de sinais, somente com a linguagem labial vocês conseguem entender? Como proporcionar o acesso dos surdos também ao entretenimento?
LAk: Bom, a língua de sinais (seja a Língua de Sinais Brasileira – Libras, seja a Língua de Sinais Espanhola – LES, seja a Língua Americana de Sinais – ASL) atende um grupo específico de surdos, os sinalizantes. Para a maioria das pessoas com deficiência auditiva, sejam surdos oralizados, surdos unilaterais ou pessoas com deficiência auditiva de graus mais leves que nem se consideram surdas, a acessibilidade ideal é a Legenda. E a Legenda não beneficia só a pessoa surda, ela é útil para pessoas autistas, com TDAH, com baixa visão, que estão aprendendo o idioma ou até para quem ouve bem, mas não consegue ouvir com clareza naquela hora. Essa é a forma de acessibilidade que eu almejo. Ter intérprete de Libras é necessário, mas tem que ter legenda junto, acessibilidade de verdade é isso!






